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Até quando o racismo será tradição no Rio Grande do Sul?

Lanceiro negro, retratado na pintura "Lanceiros da época Rivera", de Juan Manuel Blanes. - Ediciones Banco Velox
Lanceiro negro, retratado na pintura "Lanceiros da época Rivera", de Juan Manuel Blanes. Imagem: Ediciones Banco Velox

Colunista do UOL

20/09/2022 04h00

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"Mas não basta, pra ser livre, ser forte, aguerrido e bravo. Povo que não tem virtude acaba por ser escravo". Essa foi a estrofe do hino do Rio Grande do Sul que a ministra Rosa Weber evocou em seu discurso de posse como presidenta do Supremo Tribunal Federal no último dia 12. O hino, originalmente denominado de "Farroupilha", faz menção às "virtudes" daqueles que protagonizaram a guerra civil de mesmo nome, a mais extensa do Império brasileiro, de 1835 a 1845. Foi composto durante o conflito, mais precisamente no ano de 1838.

A estrofe acionada pela ministra gaúcha foi utilizada com o sentido de dirigir-se aos desmandos atuais na Advocacia Geral da União. No entanto, é inevitável a relação com a tradição evocada no estado mais ao sul do país em torno de suas façanhas a servir de "modelo a toda terra", como consta no mesmo hino. Tradição esta, aliás, homenageada na data magna estadual comemorada hoje, 20 de setembro. Afinal, consta no mesmo símbolo máximo do estado o trecho "Foi o 20 de Setembro, o precursor da liberdade".

A leitora e o leitor menos familiarizados com a história e a experiência cotidianas do Rio Grande do Sul talvez desconheçam a força do 20 de setembro por essas bandas. Mas, mesmo nos rincões mais afastados da capital do estado, a data além de ser feriado é marcada por comemorações.

Que liberdade, façanhas e virtudes são essas comemoradas no sul do Brasil? Tendo em vista a interpretação reinante e acionada constantemente, que povo é esse que acabou por ser escravo por conta de sua falta de virtude? E, como tudo isso nos ajuda a perceber como o racismo se construiu e se mantém até hoje disfarçado sob uma tradição no Rio Grande do Sul?

A comemoração de uma guerra perdida

Em 20 de setembro de 1835, teve início o conflito civil que duraria uma década, chegando a 1845. A depender do enquadramento histórico que se dá ao episódio, ele é encarado como Revolução Farroupilha ou Revolta Farroupilha. Ainda que disfarçado de apreensão coletiva, como tão bem pontua a historiadora Leticia Rosa Marques, fez-se sobretudo a partir da indisposição das elites estancieiras e charqueadoras frente aos impostos sob os quais estavam submetidos na venda do principal produto a abastecer o mercado interno: o charque.

Esse servia de alimento para os grupos subalternos e tinha como principais compradores os proprietários de escravizados. Assim, a economia da província estava intimamente ligada à existência da escravidão, inclusive em seu território, tendo em vista a mão-de-obra responsável pela produção do produto vendido pelas elites econômicas sulinas.

Um conflito tão extenso evidentemente teve muitos pormenores que escapam ao que podemos destacar aqui. De todo modo, cabe enfatizar que a elite oficializou a separação do Império da então província promovida a República Rio-Grandense. Para manter-se ativa nos combates, foi necessário recrutar de forma massiva a mão-de-obra escravizada, compondo, para isso, batalhões exclusivos de soldados negros comandados por lideranças brancas.

A força da presença negra no exército farroupilha fez com que a questão da abolição da escravidão se tornasse fundamental entre as lideranças do conflito. À medida que as tropas imperiais avançavam sobre as fileiras farroupilhas, a questão da liberdade dos soldados negros se colocava como impossível. Mais que isso, era necessário contornar aquela experiência de liberdade no pós-conflito, o que se podia entrever pelos acordos que eram construídos.

Não à toa, um dos momentos mais discutidos até hoje é o massacre de porongos, ocorrido já no derradeiro do conflito, em 14 de novembro de 1844. O batalhão de lanceiros negros foi atacado completamente desarmado naquilo que é compreendido por parte da historiografia como uma emboscada arquitetada pelas lideranças farrapas e imperiais, nos moldes do que analisa a historiadora Daniela Vallandro de Carvalho.

Em 1º de março de 1845, a guerra civil teve fim com a assinatura do Tratado de Ponche Verde, que selou o fim da República Rio-Grandense, devolvida à condição de província do Império brasileiro. Em outros termos, os republicanos assumiram a derrota. Além disso, todos os soldados negros que eram escravizados não foram alforriados, apesar de a liberdade estar prevista no tratado. Em linhas gerais, são essas as façanhas e virtudes de uma guerra perdida em que muitas das lutas foram possíveis e mantidas por tanto tempo porque um povo aguerrido por sua liberdade se somou às tropas farroupilhas, mas não viu a palavra de homens brancos da elite ser cumprida.

O racismo como tradição hoje

O processo histórico em torno do dia do gaúcho e do seu hino oferece elementos para que possamos perceber como o racismo se solidificou. E hoje, como isso se faz presente?
Infelizmente os exemplos são vastos. Destaco aqui dois de amplo alcance e finalizo com as evidências a partir de denúncias.

Em 28 de agosto de 2014, durante a partida de futebol entre Grêmio e Santos, em Porto Alegre, o goleiro santista Aranha foi xingado de "macaco" e "preto fedido" por integrantes da torcida gaúcha. Tudo flagrado pelas câmeras. O jogador fez a denúncia, o juiz da partida não registrou na súmula. Uma jovem torcedora branca foi identificada, prestou depoimento e admitiu o xingamento, mas negou ser racista. Vinculou o ato aos hinos comuns na referida torcida. Ela e outros três torcedores foram acusados de injúria racial, mas, mediante acordo, tiveram seus processos suspensos.

Em pleno 19 de novembro de 2020, véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, Beto Freitas, um homem negro, foi assassinado por seguranças do supermercado Carrefour em Porto Alegre. O ato criminoso foi filmado.

Os dois casos aconteceram na capital do estado e são emblemáticos da forma como a sociedade gaúcha encara o racismo e seus subprodutos. Homens negros tratados como desprezíveis, corpos a serem explorados, ora em tempos de escravidão, ora em liberdade. Não se trata de afirmar que nada mudou, mas, fazendo uso da análise interseccional, é possível reconhecer evidências de que se busca fixar o corpo dos homens negros em lugares de inferiorização sempre que se destacam os marcadores sociais da diferença.

Isso fica ainda mais explícito quando observamos o destaque conferido aos transtornos subsequententes sofridos pela agressora Patricia Moreira, no caso envolvendo o goleiro Aranha e a forma como se buscou desqualificar a existência de Beto Freitas logo após seu assassinato. A mulher branca deveria ser compreendida. O homem negro deveria ser lido como desprovido de virtudes. Mais uma vez, a letra do hino dá o tom da tradição que segue sendo reforçada no senso comum.

Não obstante, a edição mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública destaca que, entre todos os estados da Federação, o Rio Grande do Sul é onde houve mais denúncias de racismo, um total de 4132, número 13 vezes superior às 283 efetuadas no Ceará, que ocupa a 2ª posição.

É mais do que tempo de pensarmos sobre nossas tradições, rever nossos símbolos e questionar sobre a forma como o racismo segue atualizando-se até mesmo quando supostamente não há a intenção de fazê-lo.