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Ícones no futebol, negros já foram barrados e criaram estratégia para jogar

Casemiro e Vini Jr comemoram o gol que deu a vitória ao Brasil contra a Suíça na Copa - REUTERS/Marko Djurica
Casemiro e Vini Jr comemoram o gol que deu a vitória ao Brasil contra a Suíça na Copa Imagem: REUTERS/Marko Djurica

Colunista do UOL

30/11/2022 04h00

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As aglomerações tomam conta das cidades, telas são erguidas nos espaços públicos e as atenções estão voltadas para as TVs nos bares. Não é diferente para milhares de famílias espalhadas da Serra do Caburaí ao Chuí. É tempo de Copa do Mundo. Mas dessa vez a mais importante competição do esporte que é a cara do Brasil chega em momento completamente atípico: em pleno novembro de um ano eleitoral e durante a abertura após uma cruel pandemia de COVID - que, apesar dos percalços, traz esperança de que o pior ficou para trás.

E, como se tudo isso não fosse o suficiente, milhares de olhinhos se põem atentos para nomes diversos em corpos tão semelhantes. Não há como negar que muitas crianças negras ficam extasiadas com tantos jogadores negros em seus dribles e atuações que tiram o fôlego até de quem narra a partida. Muitos destes atletas vêm do continente africano (ainda que, que não raras vezes, defendem seleções de outros continentes) e de lugares que conhecemos muito bem: as periferias desse país continental que habitamos, aos moldes da dupla Vini Jr. e Richarlisson, que compõem parte do ataque da nossa amarelinha.

Seria essa uma Copa para finalizar com chave de ouro as comemorações de um novembro negro, que fortalece os vínculos com a diáspora africana neste Brasil contemporâneo? Se é sabido que a marca da consciência negra, gestada nos anos 1970 e celebrada em novembro, foi um esforço pela recuperação dos vínculos com o continente africano e da diáspora africana como um todo, será que o Grupo Palmares, criador da data, tinha dimensão que a cada quatro anos teríamos a oportunidade de saber um pouco mais sobre as nações africanas em pleno horário nobre na TV?

Não tenho as respostas para as perguntas. Mas o que posso afirmar é que a Copa do Mundo de Futebol possibilita pensarmos tanto na diáspora africana, essa dispersão de pessoas negras africanas pelo mundo, quanto na força do racismo num diálogo que traz consigo a força dos passados presentes.

Em termos de um passado que alcança mais de um século, cabe lembrar que o esporte, ainda que tenha sido introduzido nessas terras pelos ingleses brancos, não tardou a encontrar as várzeas. Lá, os campos proliferaram rapidamente e serviram de pontapé inicial para jovens trabalhadores, sobretudo negros, que contribuíram imensamente para o futebol virar paixão nacional. No entanto, infelizmente, nem mesmo o futebol ficou isento do racismo. Aliás, uma correção de pronto, esse é o passado que segue se atualizando.

De toda forma, a interdição não foi capaz de afastar do esporte pessoas racializadas, que, às suas maneiras encontraram formas de driblar, pelo menos em campo, essa ferida gigantesca que ocupa os corpos das nações ainda hoje. Por falar nisso, vocês provavelmente já ouviram falar do "pó de arroz" como apelido do Fluminense ou mesmo para identificar prática comum nos campos de futebol de clubes de elite nas primeiras décadas do século 20. Mas sabem a qual estratégia jogadores negros recorriam para burlar o racismo e que não passou despercebida pelos times das grandes ligas para usar esses talentos inegáveis? É da terra do atual técnico da Seleção Brasileira que vem uma parte bem menos conhecida desta resposta, que não é exclusiva do eixo Rio-São Paulo como costumeiramente se divulga.

Em 19 de julho de 1900, foi criado o Sport Club Rio Grande na cidade litorânea de Rio Grande, no sul do Rio Grande do Sul. Este é considerado o time de futebol mais antigo do Brasil sem interrupção das suas atividades. Como é sabido, a prática já acontecia, mas ou tais clubes não mantiveram atuações constantes ou foram criados com outros objetivos que não a prática do futebol. Ainda que existam contestações acerca deste protagonismo, principalmente pela Ponte Preta (SP), a Confederação Brasileira de Desportos, antecessora da Confederação Brasileira de Futebol, definiu o dia da fundação do Rio Grande como "Dia do Futebol".

De toda forma, o que nos interessa aqui é que a iniciativa de descendentes de europeus não passou despercebida. Assim, tanto times com a presença de negros quanto ligas em que apenas eles jogavam foram criadas para driblar o impedimento a que tais jogadores estavam sujeitos nos times já existentes. Como destaca a historiadora e pesquisadora junto ao Museu do Futebol (SP) Taiane Anhanha Lima, o Rio Grande do Sul teve pelo menos 30 clubes de futebol com maioria de atletas negros, organizados em quatro ligas independentes e duas associações.

O time negro mais antigo do estado foi criado em 1907 na cidade de Porto Alegre. O Foot-Ball Club Rio Grandense disputava partidas da Liga Nacional de Footbal Porto-Alegrense, depois conhecida como Liga da Canela Preta, numa menção explícita à cor dos jogadores. Também atuantes na capital gaúcha estavam a Associação Esportiva de Football e a Associação de Amadores de Football. As demais organizações localizavam-se ou na cidade de Rio Grande, caso da Liga Rio Branco, ou nas cidades próximas, como a Liga de Futebol 13 de Maio, de Bagé, e a Liga José do Patrocínio, de Pelotas.

Observar a experiência dessas iniciativas nos permite puxar o fio de um denso novelo histórico de luta contra o racismo por meio do futebol. Foram as atuações nessas organizações que tensionaram as Ligas com grande poder aquisitivo e fizeram os jogadores negros serem aceitos nos grandes clubes, aos moldes do que marcaria o Brasil de Pelotas, em 1919, campeão com uma equipe de maioria negra e o Internacional nos anos 1940. Naquela época, quando se concretiza a profissionalização do esporte no RS, a maioria da equipe colorada era formada por negros. Devido às vitórias consecutivas, aquele time entrou para a história com o apelido de "rolo compressor". Isto não apaga as atuações individuais anteriores no próprio time ou no rival Grêmio, como a de Dirceu Alves em 1928 e a de Armando Antunes em 1912, respectivamente. Mas reforça a importância da expressividade da presença negra nas grandes equipes.

Assim, retomo as linhas iniciais embalada pela canção "eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita e é bonita". Afinal, nossas crianças hoje estão se deparando com novos ídolos durante as transmissões dos jogos ou nos informes esportivos e propagandas de TV, e sonhando com a possibilidade de se verem também reconhecidas, ou seja, sonhar com um futuro em um país que insiste em manter o genocidio de jovens negros em curso. Por vezes nossas pequenas não sabem sequer pronunciar um nome repleto de consoantes como o de Kylian Mbappé, mas aprendem que, além de ser um homem negro defendendo a seleção francesa, ele é filho de um camaronês e de uma argelina. Ou ainda, Richarlison, que faz os pequenos e os adultos voltarem a orgulhar-se da verde e amarela depois da tensa disputa eleitoral em que a camisa foi identificada com a extrema-direita.

Enquanto nos deparamos com dribles e gols, ouvimos sobre sua origem humilde no Espírito Santo e comprometimento com projetos sociais, além de posicionamentos consistentes acerca de questões latentes nos últimos anos, como a defesa da ciência e da vacinação. Dois jogadores negros que têm repudiado enfaticamente o racismo e outras atrocidades que ainda insistem em se fazer presentes.

A Copa está em curso, não sabemos o que virá, assim como não sabiam os homens e mulheres negras do Grupo Palmares que idealizaram o que nos traz ao Novembro Negro. Mas podemos afirmar, que esse grande torneio esportivo é uma chance de reforçarmos nossos laços com a diáspora africana e conosco mesmo. Fica o convite para que possamos nos encantar tal e qual nossas crianças e compreendermos que antirracismo e combate a qualquer forma de opressão são posturas fundamentais. Talvez assim aprenderemos algo sobre a história de todos e todas nós, tendo em vista um futuro bem mais inclusivo e, sobretudo, mais democrático.