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Presença Histórica

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Reis e rainhas entre nós: onde Brasil escondeu realeza africana sequestrada

Mãe Olga de Alaketu, descendente de princesa africana escravizada na Bahia, o então ministro da cultura Gilberto Gil e Mãe Stella de Oxóssi em confraternização de 2003 - Antônio Milena/Agência Brasil
Mãe Olga de Alaketu, descendente de princesa africana escravizada na Bahia, o então ministro da cultura Gilberto Gil e Mãe Stella de Oxóssi em confraternização de 2003 Imagem: Antônio Milena/Agência Brasil

Colunista do UOL

16/11/2022 04h00

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Quem trabalha com pesquisa histórica sabe que investigar as vidas de homens e mulheres em escravidão não é tarefa fácil. Os dados são fragmentários, espalhados em fundos documentais diversos. É preciso cruzar uma variedade de fontes para criar uma imagem do que teria sido a trajetória dessas pessoas sob a escravidão e em liberdade. Mas a leitura desses dados às vezes mostra como o cativeiro transatlântico afetava pessoas que nunca imaginaríamos que pudessem vir a ser escravizadas, como membros das nobrezas africanas.

Genealogias de reis e rainhas africanas no Brasil têm inundado as redes sociais nos últimos tempos. Em cada post acrescenta-se uma nova linha nas biografias dessas personagens, desembarcados no Brasil como cativos. Estou falando de pessoas como Chico Rei, Aqualtune, Ganga Zumba, Teresa de Benguela e tantos outros. Há um sentido político claro em tais biografias: enfatizar que a ancestralidade africana é constituída de gente importante, poderosa, que a máquina do tráfico negreiro levou a cair nas garras das redes de escravização transatlântica.

Algumas informações sobre essas personagens são oriundas de tradições orais recentes — e em contínuo processo de elaboração e reelaboração. Noutros casos há documentos que apoiam essas narrativas. Houve, evidentemente, o apagamento das histórias dessas personagens ao longo dos séculos. O processo de "morte social", do qual fala o sociólogo Orlando Patterson, teria reduzido a experiência dessas pessoas — e não me refiro apenas à nobreza — ao drama da escravidão, a conversão dessas pessoas à condição de simples commodities. O trabalho das historiadoras e dos historiadores tem sido, nesse caso, desvelar outras experiências.

Os documentos dos arquivos quase nunca indicam a origem social de pessoas africanas sob a escravidão no Brasil. Mas ao cruzar informações dos dois lados do Atlântico, conseguimos acessar algumas dessas histórias de realeza.

A Mulher-Rei e a saga de Na Agontimé

Em uma cena de "A Mulher Rei" (2022), épico de ação dirigido por Gina Prince-Bythewood e protagonizado pela multi-premiada atriz negra Viola Davis, o rei Guezo (interpretado por John Boyega), do antigo reino do Daomé (atual República do Benim), conversa com Malik (Jordan Bolger). Durante esse diálogo, Malik diz ser filho de uma mulher daomeana escravizada e enviada para as Américas. Imediatamente cria-se uma relação de empatia, pois Guezo revela que sua mãe sofreu o mesmo destino às mãos do rei anterior. O rei garante a Malik que quando seus emissários retornassem com sua mãe, trariam a mãe de Malik junto com eles.

Esse diálogo espelha uma das tradições do Daomé, a deportação da mãe de Guezo por Adandozan, seu meio-irmão, que reinou entre 1797 e 1818. Após a morte do rei Agonglô, Adandozan quis debelar qualquer foco de rebelião e resistência ao seu reinado. Por isso espalhou seus adversários políticos pelo Atlântico a bordo dos navios negreiros europeus e americanos.

A mãe de Guezo se chamava Na Agontimé e exercia a função de kpojito, ou rainha-mãe, um cargo na hierarquia daomeana. As kpojito eram escolhidas entre as esposas do rei falecido. Como tal, tinham grande influência na corte e acesso direto ao rei. No filme, o cargo da kpojito foi alterado, já que a escolhida foi Nanisca (Viola Davis), líder da regimento militar feminino das Agodjie.

Mas voltemos à história. Na Agontimé atravessou o Atlântico e veio dar nas Américas. As tradições orais daomeanas não dizem onde, mas há fortes indícios de que o seu destino final foi São Luís, onde teria fundado um dos mais antigos e veneráveis candomblés do Maranhão, a Casa das Minas, que sobrevive até nossos dias. Como sabemos disso?

Porque as divindades cultuadas nessa casa são membros divinizados da família real daomeana. Era um tipo de culto privado da nobreza; logo, somente um membro da realeza poderia legitimamente estabelecer o culto e dirigir as cerimônias. Não se sabe se os emissários daomeanos conseguiram encontrá-la e levá-la de volta, mas essa história mostra que a escravidão não apagou as experiências e existências pregressas ao cativeiro transatlântico.

Escravização e política

Não foi a primeira vez que isso aconteceu no reino do Daomé. Na década de 1740, após a disputa pela sucessão ao trono do finado rei Agajá, o vencedor da contenda, Tegbesu, mandou seus rivais para as Américas. Entre eles estava um homem conhecido como Fruku. No final do século 18, os traficantes ingleses diziam que ele passou 24 anos no Brasil como cativo, provavelmente em Salvador, o principal destino da maioria dos escravizados que partia de Uidá, porto sob controle daomeano.

Com a ascensão do rei seguinte, que pertencia à mesma linhagem, Fruku foi resgatado e levado ao Daomé, onde era conhecido como D. Jerônimo, nome que recebera no Brasil. Ele se tornou uma espécie de representante real nos assuntos comerciais com os europeus, principalmente com os portugueses e brasileiros, cuja língua dominava. Ele ainda tentou disputar outra sucessão ao trono, novamente sem sucesso.

princesa - Antônio Milena/Agência Brasil  - Antônio Milena/Agência Brasil
Mãe Olga de Alaketu, descendente de princesa africana escravizada na Bahia, em confraternização de 2003
Imagem: Antônio Milena/Agência Brasil

Casos de deportação de membros das nobrezas africanas não eram incomuns e não se restringiam ao Daomé. No final do século 17, parentes do soberano do reino do Ndongo (no atual território de Angola) foram espalhados pelo Atlântico após uma guerra empreendida por Portugal para conquistar o reino. Alguns terminaram em Lisboa e 14 príncipes desembarcaram em Salvador. As autoridades portuguesas recomendaram que estes últimos fossem enviados para Lisboa, para evitar a sua aproximação dos quilombos, de modo que isso criasse outro foco de resistência aos portugueses no Brasil. Afinal, àquela altura, Palmares estava firme e forte, impondo sucessivas derrotas aos portugueses.

Uma princesa iorubá na Bahia

O Daomé também foi responsável pela deportação de membros da realeza de outros territórios. Em 1789, os exércitos daomeanos fizeram uma incursão no território de Ketu, um pequeno mas importante reino iorubá que hoje faz parte do Benim. Cerca de duas mil pessoas foram escravizadas, entre elas uma jovem chamada Otamkpê Ojaró (Otampê Ojaró), neta do rei de Ketu.

Essa narrativa aparece em tradições orais da África e do Brasil. Em ambos os casos, os nomes das pessoas (Otamkpé Ojaró/Otampé Ojaró) coincidem, além de detalhes sobre o método de escravização. É precisamente no cruzamento dessas fontes, manuscritas e orais, da África e do Brasil, que encontramos a confiabilidade dessas narrativas.

No Brasil, Otampé Ojaró recebeu o nome de Maria (mais tarde Maria do Rosário), construiu extensa família e fundou um dos mais antigos candomblés baianos, o Ilê Maroiá Láji, o Terreiro do Alaketu, que entre outros significados era o título dos reis de Ketu, e em seu caso específico, seu avô. Mais um candomblé centenário em plena atividade.

Quem quer que tenha tido o privilégio de conversar com Olga Francisca Régis (1925-2005), ialorixá do terreiro do Alaketu, notava sua altivez e sua presença marcante. Ela era descendente direta de Otampê Ojaró/Maria do Rosário, a princesa de Ketu escravizada na Bahia. Se queremos encontrar realezas africanas no Brasil, devemos procurar primeiro nos candomblés. Esses espaços de resistência religiosa guardam uma história de nobreza. E não apenas nobreza de sangue, mas de resiliência, sabedoria e ensinamentos.

Os exemplos poderiam se multiplicar por aqui. Cândido da Fonseca Galvão, ou D. Obá II, figura conhecida nas ruas do Rio de Janeiro do século 19, reivindicava ascendência de Abiodun, soberano do império de Oyó, que aparece retratado de forma nada lisonjeira em "A Mulher Rei". Ou de Miguel Manoel Pereira da Natureza, o "Príncipe Natureza", contemporâneo de D. Obá pelas ruas do Rio. Ou de Custódio Joaquim de Almeida, o "Príncipe de Ajudá" em Porto Alegre no final do mesmo século.

Nem sempre é possível comprovar a realeza de tais personagens a partir dos registros documentais ou de tradições orais africanas. No conjunto dos mais de 5 milhões de africanos desembarcados no Brasil, esses casos constituem uma minoria. Ainda assim, demonstram como a engrenagem avassaladora do tráfico negreiro não poupava ninguém, nem mesmo gente da realeza. Mas aqui estavam eles, altivos, reescrevendo as suas vidas e de suas comunidades nas Américas.