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Presença Histórica

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quem tem medo do que o VAR da história pode mostrar neste novembro negro?

Primeira caminhada da consciência negra - Lázaro Roberto
Primeira caminhada da consciência negra Imagem: Lázaro Roberto

Colunista do UOL

09/11/2022 04h00

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O processo eleitoral radicalizou a produção e circulação de informações que não têm lastro na realidade. A mentira escancarada tornou-se protagonista da cena pública. Ela deu o tom da narrativa em inúmeros episódios. Dentre eles, destaco o ocorrido em 30 de outubro com a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), que, na véspera do segundo turno das eleições, perseguiu com uma pistola em punho um homem negro. Para justificar o que é injustificável, ela alegou que, entre outras coisas, teria sido empurrada pelo rapaz.

O vídeo que circulou largamente nas mídias sociais mostra nitidamente que a deputada caiu porque escorregou no meio-fio. Naquele dia, acompanhando as redes sociais de Zambelli, fiquei chocada ao observar que a exibição da imagem não fez seus apoiadores questionarem a inverdade, já que muitos ângulos da cena foram compartilhados em diversos canais. Fato é que, no imaginário racista, um homem negro não ocupa a posição de vítima, mesmo quando as evidências são incontornáveis.

Racismo, mentira e distorção da realidade. Estes são ingredientes deste acontecimento que expressam como a aderência às fake news no Brasil está ligada a forma como lidamos historicamente com a verdade. Construído com base na falaciosa ideia da inexistência do racismo, o país é solo fértil para a mentira ser sustentada publicamente de forma tão grosseira.

Daí a relevância de uma efeméride como o Novembro Negro, mês em que celebramos o Dia da Consciência Negra. Essa data foi criada pelo movimento negro contemporâneo para problematizar as práticas falaciosas pautadas pelo mito da democracia racial, que pressupunha a inexistência do racismo no Brasil. Esse caráter de ocultação da realidade foi apontado pela filósofa Lélia Gonzalez (1935-1994), ao dizer que o racismo no país se expressa pela denegação - o termo psicanalítico descreve um mecanismo de defesa psíquico por meio do qual se exprime negativamente um desejo ou uma ideia cuja presença ou existência é recalcada.

No terreno da história, o racismo por denegação expressa um sintoma social. Fomos tão hábeis na produção dessa fantasia que, na década de 1950, o mundo estava convencido de que o Brasil era o "laboratório da civilização", expressão cunhada pelo pesquisador alemão radicado nos EUA Rudiger Bilden (1893-1980). A crença na democracia racial, que teve na obra de Gilberto Freyre a mais conhecida interpretação, tornou-se o principal viés ideológico da integração racial, o que chamou a atenção internacional, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Naquele contexto, conforme detalha o pesquisador Marcos Chor Maio, por conta dos horrores produzidos pelo Holocausto, o mundo buscava soluções para o problema do racismo. Ademais, a persistência do apartheid racial nos Estados Unidos e na Àfrica do Sul, a emergência da Guerra Fria e o processo de deslonização em África e na Ásia favoreceram que a pauta racial ganhasse relevância global.

Entre 1951 e 1952, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) patrocinou uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil. O objetivo era entender como o país, situado na periferia do mundo, desenvolveu um tipo de sociabilidade em que as relações raciais eram harmoniosas.

Também conhecido como Projeto Unesco, o programa de estudos delineado pelo sociólogo Arthur Ramos (1903-1949) focalizou o Nordeste e o Sudeste, especialmente as cidades de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. O trabalho de fôledo contou com a participação de importantes intelectuais da sociologia da época como Roger Bastide (1889-1974), Thales de Azevedo (1904-1995), Costa Pinto (1920-2002), Virgínia Bicudo (1910-2003), Oracy Nogueira (1917-1996), Florestan Fernandes (1920-1995), Guerreiro Ramos (1915-1992), entre outros.

No que pese as diferenças regionais, a pesquisa apresentou um conjunto de dados sistematizados que comprovavam a existência do preconceito e da discriminação racial no Brasil. Situação que as experiências negras conheciam e eram denunciadas pelo movimento negro da época. Destaca-se, em 1950, o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, organizado pelo TEN (Teatro Experimental do Negro), tendo à frente de sua elaboração o dramaturgo Abdias do Nascimento (1914-2011), o sociólogo Guerreiro Ramos (1915-1992), e o antropólogo Edison Carneiro (1914-2011). Vale dizer que só foi possível levantar muitos achados da pesquisa graças à interlocução com militantes do movimento negro da época.

Como não se pode enganar todo mundo o tempo todo, a verdade sobre as relações raciais no Brasil foi revelada em um projeto com repercussão internacional.

Se na década de 1950, as organizações do movimento negro colaboram com a produção da verdade durante o Projeto Unesco, neste momento, em 2022, quando acontece a COP 27, considerada a maior cúpula sobre as mudanças climáticas, uma comitiva da Coalização Negra por Direitos, entidade que congrega cerca 250 organizações do movimento negro, está presente no Egito para denunciar o racismo ambiental, levando para a mesa de discussão debates incontornáveis para a redução de desigualdades e para construção da justiça ambiental. Trata-se de seguir uma tradição cujas práticas têm funcionado como espécie de VAR da história, tornando visível aquilo que este país insiste em escamotear.