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Preto correndo é ladrão? Passou da hora de falar sobre perfilamento racial

Ato do movimento negro em São Paulo. - Coalizão Negra por Direitos
Ato do movimento negro em São Paulo. Imagem: Coalizão Negra por Direitos

Colunista do UOL

15/03/2023 04h00

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Uma sala de cinema lotada em 1997 para assistir Homens de Preto (MIB). O filme iniciou com uma desabalada perseguição. Era noite e dois homens corriam pelas ruas de Nova Iorque sem que se soubesse ao certo quem perseguia quem. De repente, um homem alcança e imobiliza o outro ao mesmo tempo em que exibia o distintivo: "Polícia de NY!", disse o personagem. Susto no cinema e alguém gritou no meio da escuridão da sala: "Égua, mano! O negão era polícia? Como assim?"

O espanto incontido do anônimo espectador não era isolado; várias vozes se seguiram expressando igual assombro. Todos sabem já que é voz corrente nesse país: "preto parado, é suspeito; correndo é ladrão". A questão é: como a sociedade brasileira naturalizou esse tipo de coisa? É uma pergunta essencial nos tempos que vivemos e que está no centro de questões cruciais que lançam luz sobre as modalidades brutais de expressão do racismo no Brasil como extermínio da juventude negra, encarceramento em massa e, mais recentemente, no debate que está em pauta no Supremo Tribunal Federal - STF sobre perfilamento racial.

E o que é isso? Fácil. Diz respeito ao ato de suspeitar de uma determinada pessoa em função de seu fenótipo racial, ou seja, colocar um cidadão como alvo apenas porque apresenta determinadas características físicas. Aliás, a expressão popular que mencionei explica isso com notável precisão. Antes que se alegue exagero, vamos aos números. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) indicam que as pessoas negras representam cerca de 67% da população prisional e que, a cada 10 pessoas assassinadas neste país em 2021, 8 eram negras. Negros foram 87 % dos mortos pelas forças policiais e também eram negros cerca de 67% dos policiais assassinados. A cada 23 minutos, morre um jovem negro no Brasil. Faz sentido. Suas chances de ser assassinado são 2,6 vezes maiores que uma pessoa não-negra. São números de guerra.

E o que o perfilamento racial tem a ver com isso? O modo de abordar pessoas a partir de um determinado tipo físico determinado e associado com a criminalidade é uma chave importante para contextualizar essas estatísticas de extermínio. Homens negros são alvo preferencial da suspeição prévia, abordados com maior frequência pelas polícias e, como inúmeras histórias dramáticas revelam, vítimas de execuções sumárias, inclusive pelo porte de objetos 'perigosos", como guarda-chuvas e furadeiras.

Negro parado é suspeito

Era 2020. Havia um cidadão parado ao lado de um carro e conversando com o motorista em uma rua de Bauru (SP). Foi abordado por policiais e acabou preso por portar 1,53 gramas de cocaína. No boletim de ocorrência, o primeiro registro é a cor do homem. A imprensa repercutiu declarações de um dos policiais que disse que "avistou um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas." O homem negro preso foi condenado a 7 anos de prisão por tráfico. Ainda que, posteriormente, sua pena tenha sido reduzida, ele não foi absolvido.
O caso chegou ao STF por iniciativa da Defensoria Pública de São Paulo, com o apoio de um conjunto de entidades da sociedade civil (Coalizão Negra por Direitos, Conectas Direitos Humanos, Educafro Brasil, Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Instituto de Referência Negra Peregum, Instituto Terra Trabalho e Cidadania e a Plataforma Justa).

O argumento central dos defensores é que o caso é uma demonstração cabal de perfilamento racial já que o cidadão foi abordado, sobretudo, por conta de sua cor, configurando racismo institucional na abordagem policial. Considerando que tal prática é discriminatória, inconstitucional e violadora de direitos, as provas recolhidas em abordagens policiais assim configuradas podem ser invalidadas. Há uma forte expectativa em torno desse julgamento porque existem desdobramentos importantes no mundo jurídico a partir dele. Um deles é, sem dúvida, um reposicionamento da questão do racismo nas abordagens policiais e no sistema jurídico brasileiro. Em relatório de 2020, a Organização das Nações Unidas - ONU, chamou atenção para o fato de que há uma cultura de perfilamento e discriminação racial em todos os níveis da justiça no Brasil.

O julgamento foi suspenso por um pedido de vistas e pode retornar ao plenário na quarta-feira (15/03).

Liberdade precária, cidadania em xeque

Nas primeiras décadas do século 19, a situação de gente negra livre era um fio de navalha porque sua condição de liberdade podia ser facilmente questionada. Andar nas ruas do Rio de Janeiro, por exemplo, era um perigo permanente já que a polícia tinha orientações precisas do então chefe de polícia Eusébio de Queiróz: "não sendo fácil obter provas de escravidão, quando um preto insiste em dizer-se livre (...), mais razoável é presumir a escravidão." Dito de outro modo, se era negro, já se presumia sua condição de cativo. Estava preso sob suspeita de ser fugitivo. Não é demais lembrar que entre as atribuições da polícia oitocentista estava a detenção de escravizados fugitivos. São inúmeros os casos de gente livre, presa sob tal argumento, que atravessou anos no cárcere porque não podia provar que não era escravo.

Nesse momento, o país passava por um momento crítico com relação ao cumprimento da legislação antitráfico e havia um imenso esforço de legalizar a ilegalidade da escravização de africanos desembarcados a partir da 1831, ano da lei que, no limite, proibia seu desembarque no Brasil e punia os traficantes. Os estudos dos historiadores Beatriz Mamigonian, Sidney Chalhoub e Keila Grinberg, por exemplo, apresentam um panorama denso sobre esse contexto e os impactos na vida da população negra no país. Afinal, é preciso não deixar esquecer que havia um expressivo número de pessoas negras que eram livres reforçando a ideia de que a escravidão não é o único meio de abordar tais existências. Ao contrário do que dizia o tal Eusébio e, por extensão, a polícia do Rio, nem todo preto era escravo.

A liberdade era uma condição precária, frequentemente ameaçada e a cidadania de gente negra colocada em um lugar de sistemática desqualificação e desrespeito. Uma prática recorrente e historicamente assentada em incontáveis modalidades de exclusão no país onde o racismo é estrutural, institucional e, mais que isso, naturalizado.

Tornado parte do cotidiano, o racismo se alimenta de coisas prosaicas, como aquele espanto coletivo no cinema, passa por práticas de desqualificação, atravessa todas as modalidades de apagamentos e mortes físicas ou não. Ainda assim, ele subsiste firme em declarações públicas acintosas, mas socialmente aceitas. Disso também tratou a última coluna de Ana Flávia Magalhães Pinto.

O perfilamento racial é uma realidade. Revela-o a declaração de uma autoridade da República quando se manifestou sobre o caso no STF: "Se entender que é racismo, vai ter que soltar todos os presos por tráfico". Precisa essa frase tal como a de Eusébio de Queiróz. Lembrando Conceição Evaristo, faz tempo que eles combinaram de nos matar. Quando se trata de gente negra, viver sempre foi muito perigoso.