Céline Dion, o Japão nas Olimpíadas e o viralatismo nacional
Começou com a americana Lady Gaga. Terminou com a canadense Céline Dion. A cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris foi tão diversa quanto a enorme mestiçagem dos atletas franceses. O vestido de Céline Dion é da francesíssima casa Dior, mas dirigida pela italiana Maria Grazia Chiuri. A França demonstrou que dá para se ter muito orgulho de sua cultura, sendo ao mesmo tempo local e global.
O normalmente isolado Japão conseguiu, depois de décadas, classificar suas seleções de basquete, vôlei e handebol aos Jogos de Paris, recorrendo a técnicos estrangeiros. Aliás, desde as Olimpíadas de Tóquio em 2021, eles deixaram o nacionalismo de lado nos campos e quadras. E até Cuba, com todo o isolamento que o comunismo proporciona, preferiu confiar ao francês Christian Louboutin seus trajes olímpicos, a recorrer a alguma Riachuelo estatal.
Nesses eventos planetários, a raquítica internacionalização do Brasil fica realçada. É a nossa insegurança? A CBF conseguiu ignorar até o flerte de um Guardiola, quando este ainda queria treinar a pobre seleção brasileira. Não dá para imaginar o campeonato inglês de futebol — para muitos, a liga mais competitiva do mundo — sem técnicos de fora como Guardiola, Jürgen Klopp e José Mourinho (atualmente, dos 20 times da Premier, apenas quatro têm técnicos ingleses). O Real Madrid passou a última década liderada pelo italiano Ancelotti e pelo francês Zidane, com exceção do curto período do local Rafa Benítez. Os torcedores madrilistas agradecem.
O Brasil até já foi um país aberto. Atraía milhões de imigrantes, buscava talento estrangeiro para abrir nossas universidades, revolucionar nossa arquitetura e urbanismo, até para reinventar o teatro nacional. Os meninos da zona sul carioca ouviam jazz, claro, antes de inventar a Bossa Nova. Le Corbusier foi convidado para projetar no Rio, e daí mudou Lucio Costa e Oscar Niemeyer.
Mas isso foi há quase cem anos. Hoje, longe da zona oeste de São Paulo ou da zona sul do Rio, é raríssimo ouvir uma família estrangeira em um supermercado ou em uma escola. Segundo o último Censo, há menos de 1,5 milhão de estrangeiros morando no país, ou 0,7% da nossa população. Com emprego formal, o número é ainda menor: 228 mil. Para os racistas que têm pena de Nova York ou Paris nas redes sociais, por ter "estrangeiro demais", é bom aprender este número: 17% dos habitantes do seu querido Texas são estrangeiros. São Paulo não tem 1% de estrangeiros. A população de imigrantes do Texas, 5 milhões deles, é mais do que o triplo de todos os imigrantes morando no Brasil.
Qualquer grande cidade do mundo atrai talentos e gente ambiciosa, de PhDs aos que topam os empregos mais duros e com menor salário. Dos que criam startups unicórnios aos que vão abrir a vendinha, a oficina mecânica, a padaria, o salão de beleza (e gerar empregos inclusive para os locais). Novas cabeças, novos pensamentos que lubrificam as áreas mais enferrujadas de países estabelecidos. O Brasil não anda sexy para o resto do mundo. Qual é a proposta dos atuais candidatos a prefeito para deixar São Paulo mais internacional, mais sexy?
Antes de realizar a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, o Brasil recebeu 6,7 milhões de turistas em 2013 (menos da metade do que atrai a África do Sul por ano). Depois desses dois eventos, em 2018, o Brasil continuou nos 6,5 milhões. Nunca o ultrapassamos.
Nossas universidades são ainda menos atraentes. Só 0,2% dos estudantes na graduação das universidades brasileiras vieram de fora, segundo o Censo do Ensino Superior. Na Argentina, são 4,3% (mais de vinte vezes o número do Brasil). Na Espanha, são 6%. Em Portugal, surpreendentes 17%. E olha que não estou falando de EUA ou Reino Unido, com suas universidades estreladas.
Não chegam a mil os estudantes americanos em universidades brasileiras. De Portugal, são míseros 619 aqui. A USP, que alguns inocentes insistem dizer que vai bem nos rankings internacionais, tem 342 estudantes estrangeiros na graduação. Apenas a Universidade Nova, de Lisboa, tem 5 mil estudantes estrangeiros em suas filas.
O Censo brasileiro nem indica quantos professores estrangeiros atuam nas universidades brasileiras. O número deve ser menor ainda. mas certamente há mais docentes estrangeiros na Universidade de Pequim que na Unicamp ou na Unesp.
Não se conhece grande indústria mundial que não seja composta de peças produzidas em diversos países, de campeonatos esportivos a semicondutores. Mesmo a NBA tem jogadores de basquete estrangeiros, muitos deles. Até Hollywood vive dessa cadeia produtiva global. Vários mexicanos, britânicos e até coreano levam Oscars e ficam com grandes cachês. A Fiesp não leu esse memorando, e ainda vai exigir que o Brasil aumente muito o imposto contra carros elétricos, como fizemos contra computadores nos 1980.
Antes da nossa primeira Copa do Mundo, em 1958, Nelson Rodrigues definiu o "complexo de vira-lata" como sendo "um problema de falta de fé em si mesmo". A "viralatagem mor" é bloquear a possibilidade de termos chineses, americanos ou europeus por aqui, com a desculpa de que não teríamos como competir, nem aprender. É de uma falta de fé total no nosso potencial.
Porém, esse provincianismo brasileiro, que cria barreiras para não concorrer e não coloca nosso saber à prova, não aparece em muitos rankings, não gera choro ou narrativas histriônicas dos Galvões Buenos. Nem geram "pedidos de mais verbas". Os Jogos Olímpicos são uma rara oportunidade para se medir a quantidade de medalhas que estamos perdendo.
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