Qual é o mais feio? Itapevi gasta milhões em cópia do mercado de Santos

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As novelas de antigamente abusavam de um plot cômico: as estrelas rivais que chegam à mesma festa com vestidos idênticos. Dava processo e ameaça de morte ao estilista que copiou (ou se repetiu).
Mas a prefeitura da rica Itapevi, na Grande São Paulo, gastou o equivalente a mil vestidos por um projeto copiado. Acaba de ficar pronto o primeiro Mercado Municipal da cidade de 250 mil habitantes. Por R$ 20 milhões, é cópia de um dos mercados mais feios do país, o de Peixes de Santos, aberto em 2020.
Os dois têm o mesmo tamanho (1.900 m²), um mezanino igual de 600 m², a mesma fachada espelhada de vidro-fumê-dos-anos-80 e um M alongado, vingança do designer gráfico que teve cachê pobrinho. Mercado sem circulação de ar já é uma desgraça. O de Santos, na avenida Mario Covas, colocou um restaurante dentro do envidraçado sem janelas, para que os comensais sejam perfumados pelos peixes dos boxes durante a refeição.
Preocupação térmica, ambiental, eficiência energética? Bobagem. Paisagismo, algum verde? Nem pensar. Proteção, marquise, sombreamento para quem espera na entrada? Não consta. Nem uma corzinha sequer.
Pobre Vinicius. Seu Brasil de hoje não liga para belezas fundamentais. Com esse orçamento, dava para se fazer algo bem mais belo e confortável.
Não é franquia mesmo. Mas até o McDonald's consegue incluir alguma variação em suas lanchonetes. Não foi o caso aqui. A obra foi financiada pelo governo do estado, durou 15 meses, via a agência Desenvolve SP. Nem na cidade, nem na capital, os burocratas viram algo estranho.
Como isso foi possível? Primeiro, ninguém ligou. Não só quem maneja o dinheiro público. Anestesiados diante da feiura, em uma sociedade onde a elite só se preocupa com o interior da sua casa, do que é vedado à vista de estranhos. Jamais o que é compartilhado —uma fachada, um prédio, a sede de um banco— desperta interesse.
Nossas cidades médias e pequenas não têm corpo técnico do métier arquitetônico, e há muito não contam com mídia local. Quem sabe um jornalista de Itapevi poderia ter constrangido o prefeito da cidade por ter pago por uma réplica de algo já horrendo. Mas as empresas, das grandes às pequenas, estão mais preocupadas em patrocinar as redes sociais de gente como Zuckerberg ou Elon Musk do que financiar qualquer mídia, especialmente local.
Em 2023, o site da prefeitura de Itapevi tinha divulgado outro projeto, quando a construção começou. Igualmente ruim, mas parecia um pouquinho mais original. Não é um rincão pobre. Itapevi é vizinha de São Roque, Cotia e Barueri, onde se escondem ou se isolam muitos ricos que trabalham e faturam na capital.
Fim da beleza
Com 420 mil habitantes e potencialmente turística, Santos ignora qualquer ambição arquitetônica há décadas. Mas até os números andam suspeitos. O tal Mercado de Peixes, com cara de Mosca de filme de terror foi "bancado" pela iniciativa privada, tão pouco inspirada quanto o poder público, como compensação por troca de potencial construtivo com a prefeitura.
É difícil precisar o valor do acordo entre Prefeitura de Santos e a maior incorporadora da cidade. A comunicação é confusa. Em 2018, a prefeitura autorizou o grupo a construir prédios bem acima do permitido na Ponta da Praia, além de transferência de potencial de uma antiga estação de trens no bairro do Campo Grande para tal incorporadora.
A compensação para a construtora seria erguer o novo Mercado de Peixes e um centro de convenções em terrenos pertencentes ao município. Em 2018, os prédios da tal compensação eram avaliados em R$ 40 milhões; no ano seguinte, ainda segundo a prefeitura, os dois valeriam R$ 86 milhões. Ao ser entregue o mercado, em 2020, já tinha saltado para uma compensação de R$ 130 milhões.
Para complicar ainda mais a transparência, a Prefeitura de Santos comunicou que "a lei não especifica valor, mas apenas a estrutura mínima" dos dois equipamentos. Ao ser concedido à iniciativa privada, o centro de convenções foi avaliado em R$ 32 milhões. Posteriormente, a empresa beneficiada anunciou que também faria uma escola no pacote de contrapartidas, batizando-a com o nome do pai do então prefeito Paulo Alexandre Barbosa, responsável pelo acordo. A prefeitura afirma que "não houve gasto público na construção do Mercado de Peixes", como se contrapartidas por lei fossem favores, gratuitos.
Já na inauguração do mercado de Itapevi em dezembro, quando ainda não estava pronto, o ex-prefeito Igor Soares e o atual (então eleito), Marcos Godoy, ambos do Podemos, elogiaram o "design moderno e a arquitetura contemporânea" do espaço espelhado. Políticos da direita nacional, que aprendem sobre arquitetura com o "Brasil Paralelo", não podem lamentar o fim da beleza. Eles promovem esse fim em cada oportunidade.
Fiz um vídeo sobre a importância de mercados municipais bem projetados, de Belo Horizonte e Brasília a Pirituba, na zona norte de São Paulo, assista:
Infelizmente, tais prefeitos não recorrem a quem entenda.
Cidades pequenas mundo afora não acham a arquitetura um supérfluo. Acabo de voltar de Ushuaia, na Patagônia argentina. Olha só um aperitivo do que se tem feito por lá, do aeroporto local ao mobiliário urbano das praças:
O paulistano tende a romantizar a beleza e a qualidade de vida das cidades médias e pequenas. Mal sabe que do Sul ao Nordeste, nossas cidades menores estão virando cemitério da estética. De réplicas da Fontana di Trevi à Torre Eiffel, a mercados como esse.
Antes de pensar no turista, a beleza do que se constrói é fundamental para a qualidade de vida de quem mora lá, que pode se encantar (ou se deprimir) a ver essas construções todo santo dia. O Brasil das cores, tropical, informal, leve e inovador anda passando longe da arquitetura oficial.
Após a publicação deste texto a Prefeitura de Santos enviou ao UOL a seguinte nota:
"A construção do Mercado de Peixes teve custo zero para a Prefeitura de Santos. A obra foi executada pela iniciativa privada, de acordo com a legislação vigente, que estabelece compensações ao Município.
Iniciada em setembro de 2019 e finalizada em março de 2020, a obra do novo Mercado de Peixes se soma à do Centro de Atividades Turísticas (CAT) na compensação referente ao Núcleo de Intervenção e Diretrizes Estratégicas (Nide) 4 - Estação Sorocabana. À época, a estimativa de investimento da empresa para a realização as duas obras juntas (Mercado de Peixes e CAT) era de R$ 86 milhões, sendo que o custo estimado apenas para o Mercado de Peixes era de cerca de R$ 8 milhões.
Também frisamos que, à época, o valor estimado de R$ 86 milhões divulgado foi a soma do investimento da iniciativa privada previsto para duas obras - Mercado de Peixes e CAT (Centro de Atividades Turísticas)."
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