Negro e crítico do racismo, um Machado de Assis longe da fama de 'isentão'
- Mas enfim não podes negar que é bonita?
- Não.
- Que te ama?
- Não digo que não, mas?
- Creio que também gostas dela?
- Pode ser que sim.
- Pois então?
- Não é bem pálida; eu quero a mulher mais pálida do universo.
O diálogo acima é um trecho de "A Mulher Pálida", conto de Machado de Assis que narra a história de Máximo, estudante pobre que herda fortuna inesperada e começa a receber propostas de casamento de diversas pretendentes. O rapaz recusava todas as mulheres, "asseverando que a mais pálida ainda não havia aparecido". Quem muito escolhe, acaba escolhido - o ditado popular se fez valer também nessa sequência de peripécias publicadas originalmente em 1881. "Uma tarde, antes de jantar, estando o pobre rapaz a escrever uma carta para o interior, foi acometido de uma congestão pulmonar, e caiu." Ironia final, enfim desposou "a noiva mais pálida": a morte.
"A Mulher Pálida" tem sido evocada em leituras recentes para refutar a visão tradicional de que Machado de Assis teria ignorado a questão racial em suas obras. Numa interpretação mais contemporânea, Machado teria combatido o racismo à sua maneira e com as condições possíveis em sua época. Por esse prisma, o que seria a saga frustrada de Máximo em busca da mulher mais alva possível senão uma aguda crítica - irônica, é certo - ao apego exagerado da elite brasileira à branquitude europeia?
"São múltiplas as leituras sobre Machado. Em parte delas, é possível encontrar críticas ao racismo e a uma elite colonizadora e patriarcal que não ousava olhar para si mesma ", afirma a pedagoga e produtora cultural Elen Ferreira, diretora executiva da iniciativa Pretinhas Leitoras. "Ocorre que essa autopercepção não poderia ser construída de forma agressiva a ponto de silenciá-lo. Ironia e sarcasmo eram características de seu texto. As conclusões ficavam a cargo do leitor."
Separadas por quase dois séculos, as histórias de Elen e de Machado se cruzam em um lugar: a zona portuária do Rio de Janeiro, berço dos morros do Livramento, onde nasceu o escritor, e da Providência, considerada a favela mais antiga do Brasil, onde a pedagoga viveu por 28 anos. Elen foi uma das conferencistas que encerraram no início de fevereiro a Ocupação Machado de Assis, no Itaú Cultural, em São Paulo.
Para além de examinar o legado machadiano na literatura, a mostra buscou "enfatizar a negritude do homenageado". É um trabalho de revisão histórica. À medida em que se celebrizava, Machado foi passando por um processo de branqueamento social, a ponto de sua certidão de óbito classificá-lo como branco.
"Machado era negro, veio do morro e não estudou em escola formal. Ele se reconhecia como negro a partir de seus escritos, sua obra diz que ele é negro. É preciso lembrar, porém, que parte de sua produção se dá em um período pré-abolição [seu texto de estreia é a peça Desencantos, de 1861]. Machado era também um homem produzido pela sociedade de seu tempo. Precisou desenvolver estratégias para falar sobre a desigualdade social e denunciá-la", diz Elen.
A pedagoga aponta na obra machadiana alguns temas recorrentes com o recorte racial. Primeiro, a presença de pessoas negras nos textos de Machado. "Mesmo que ocupem papeis secundários, elas são retratadas, o que era algo muito difícil naquela época. O que era escrito sobre negros era pelo olhar do que os brancos fantasiavam sobre os negros", afirma.
"Outro assunto é a ridicularização da elite que importava um projeto de sociedade que pudesse imitar a Europa, presente por exemplo em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Também é possível encontrar críticas ferozes à escravidão e à sua desumanização, como em Memorial de Aires [último romance de Machado, lançado em 1908, ano de sua morte]", diz Elen.
A pedagoga aponta que esse novo olhar sobre um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL) ainda está distante das escolas. "Só no ensino superior é que acontece esse encontro com um Machado mais crítico", afirma. "Na conferência de encerramento da Ocupação, apresentei um vídeo em que adolescentes imaginam como era Machado de Assis e a maioria diz que ele era branco. No imaginário coletivo, o intelectual é uma pessoa branca, a pessoa preta não se vê nesse lugar", afirma.
Elen também argumenta que a obra de Machado aparece tardiamente na escolarização, geralmente concentrada no Ensino Médio como leitura obrigatória para o vestibular. "Pode-se falar dele desde cedo, com livros em diversos formatos que possam apresentar o autor e tendo o professor como mediador para superar as eventuais barreiras linguísticas".
"Há uma série de possibilidades de se trabalhar Machado na infância, mostrando esse menino da favela que ele foi, essa realidade que ela vai pontuar, por exemplo, em suas crônicas. Há um mar de textos voltado para a realidade social que ainda conservam a atualidade", finaliza.
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