Experiência francesa reabre polêmica sobre uniformes escolares
O mau desempenho dos alunos franceses no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) disparou o alarme no governo da França e desencadeou uma "onda de choque" na educação do país. Para supostamente tornar o ensino mais exigente, a administração do presidente Emmanuel Macron lançou um pacote de medidas controversas. A maioria faz parte do receituário conservador, como a ampliação da repetência e a formação de grupos de estudantes por nível de desempenho nas aulas de Francês e Matemática. Há também um chamado às escolas para retomar o uso do uniforme escolar.
Essa última não deixa de ser surpreendente. É difícil encontrar relação direta entre o resultado nas provas e a adoção da vestimenta obrigatória. A justificativa seria uma tentativa de diminuição das desigualdades e de melhora do clima escolar: o uso do uniforme teria um aspecto de reforço da autoridade, de redução do assédio e da garantia da laicidade da educação. Vale lembrar que na França a polêmica se sobrepõe a uma outra. Desde 2004 é proibido nas escolas usar qualquer símbolo religioso ostensivo, como o véu islâmico e o quipá. No ano passado, o governo vetou também a abaya, uma túnica comum em países árabes e do norte do continente africano.
Funciona? Tão associado à escola como o sinal do intervalo, a organização das carteiras e a divisão por disciplinas, o uniforme escolar é um dos artefatos mais visíveis da disputa entre uma instituição e suas regras (coletivas, muitas vezes coercitivas) e as identidades (em tese individuais, expressão de formas únicas de ser e estar no mundo).
Redução de desigualdades ou apagamento de diferenças
Há bons argumentos contra o uso do uniforme e também a seu favor. No córner da defesa do fardamento obrigatório, defende-se que ele elimina os "desfiles de moda nas escolas" e nivela as desigualdades socioeconômicas. Não é raro que a posse de roupas caras seja considerada símbolo de status e sua ausência um motivo para o bullying. No fim das contas, comprar ou receber uniforme evitaria o consumismo, seria mais econômico e prático para responsáveis e alunos e contribuiria para a democratização da educação na forma de um acesso mais igualitário.
Outra justificativa é um suposto aumento da segurança. O exemplo das saídas extraclasse é elucidativo. Em um museu lotado, é muito mais simples encontrar todo o grupo de alunos caso eles estejam usando a mesma roupa. O uniforme contribuiria, ainda, para um senso de pertencimento e no processo de identificação com a instituição de ensino.
Os opositores apontam o uniforme como instrumento de controle dos corpos, perspectiva incômoda para quem defende o caráter emancipatório e transformador da educação. Historicamente, o uniforme escolar deriva dos trajes eclesiásticos e aparece entre os séculos 16 e 17, em época parecida com o surgimento do uniforme militar. Na França, ele foi introduzido nas escolas por Napoleão em 1802. Muitos colégios militares em todo o mundo o mantém até hoje.
Além de cobrir o corpo por pudor e proteger do calor e do frio, o uniforme, como qualquer outra peça de roupa, comunica. O vestuário homogêneo pode carregar valores, fazer propaganda de um determinado governo ou ideologia e assim por diante. De uma perspectiva das relações de poder, o uniforme faz parte das estratégias para modelar os indivíduos em suas relações com o mundo.
Em texto de 2012, Ivanir Ribeiro e Vera Lucia Gaspar da Silva recorrem à americana Inés Dussel — que por sua vez bebe nos trabalhos do francês Michel Foucault — para afirmar: "É por meio do corpo e das práticas sobre ele que se moldam os comportamentos; a regulação da vida social é, em primeiro lugar, a regulação dos corpos".
Um exemplo simples é a distinção entre uniformes femininos e masculinos. As peças de roupa vão "ensinando" a meninos e meninas padrões estéticos e morais — muitas vezes, bastante estereotipados — acerca da construção dos gêneros.
Trajetórias em meio à polêmica
As escolas têm navegado pela controvérsia de forma flexível. Muitas delas aproveitam o debate — mais simples do que outros ligados a questões pedagógicas ou de disciplina, por exemplo — para imprimir algum grau de democratização à gestão. Remete-se a questão à comunidade escolar, que por meio de assembleias ou enquetes define sobre a pertinência ou não do uniforme (no caso da rede pública, a decisão precisa ser validada pelo conselho escolar), sobre quantos e quais modelos, para qual nível de ensino (é comum a liberação no Fundamental 2 ou Médio, por exemplo) e quais peças são obrigatórias (muitas vezes é só a camiseta).
Mais criativos ainda são os alunos. Há vários estudos que mostram como estudantes adotam estratégias para continuar se exprimindo mesmo com a obrigatoriedade do uniforme. Uma camiseta por baixo da roupa da escola, o uso de roupas próprias no caso dos itens não obrigatórios, a expressão por colares, brincos, penteados ou a customização das peças do fardamento quando a escola assim o permite.
Na França, confusão à vista
Na França, a polêmica deve aumentar. O governo lançou um convite para que as escolas aderissem à proposta de uniforme obrigatório a partir de setembro de 2024, quando se inicia um novo ano letivo no país. O jornal Le Monde mencionou a ausência de consenso científico sobre as vantagens do uniforme na redução das desigualdades, afirmando que os poucos estudos existentes apontam "sobretudo a ausência de efeitos benéficos". Uma comissão de pesquisadores vai acompanhar a iniciativa e indicar se houve redução da desigualdade social.
A publicação também classificou o experimento do governo Macron como um "lançamento difícil". No começo do mês, o Ministério da Educação falou em cerca de 100 adesões de escolas à proposta, mas na semana passada 15 delas se retiraram da experiência. O governo agora fala em 87 colégios confirmados e prorrogou o prazo de adesões para junho — a data inicial era 15 de fevereiro.
Há críticas também ao preço do kit de vestimentas, estimado pelo governo central em 200 euros por aluno (aproximadamente R$ 1,1 mil). Os custos serão divididos ao meio entre as coletividades locais e a administração Federal.
No Brasil, barrar alunos que estejam sem uniforme é inconstitucional (fere o artigo 208 da Constituição, que garante o direito ao ensino). No caso das redes públicas, diversos estados e municípios fornecem o fardamento. Naqueles em que é preciso pagar, a Constituição também garante o acesso de quem não tiver condições (o artigo 206 diz que o ensino será ministrado com base na gratuidade e na igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola), mesmo que a obrigatoriedade conste em regimento escolar.
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