O 'grande de novo' de Trump é retorno a passado inexistente e impossível
Trump ganhou. Legitimamente e bem. Triunfo do Maga, o Make America Great Again. O "grande de novo" a que Trump se refere quando fala em transformar a América —Estados Unidos, para ser exato— é um objeto de tempo e espaço indefinidos. É importante que seja assim. Qualquer referência mais precisa a um lugar ou época determinada levanta objeções do tipo "mas naquele tempo também tinha...". Preencha as reticências com as mazelas de sua preferência.
Porque toda época tem seus "mas". No caso dos Estados Unidos, os poréns são bastante relevantes. Supondo que Trump esteja falando, por exemplo, dos dourados anos 1950, os privilégios do capitalismo industrial do pós-Segunda Guerra eram para poucos. Não dói lembrar que o racismo era legalizado nos EUA até 1964. Negros do Sul, muitos deles em estados governados por democratas (a conversão a uma postura liberal é relativamente recente), não podiam votar, eram segregados em ambientes públicos e viviam sob regime de terror, com ameaças de linchamento.
Como são tempos estranhos, não é que o "great again" de Trump ignore esse "mas". Na verdade, o exalta, dada a quantidade de ofensas, durante o primeiro mandato e turbinadas na campanha, a minorias em direitos —-negros, latinos, mulheres, imigrantes. Trump é um sonoro "não" às pautas pós-materialistas ou "identitárias". É mais uma eleição a indicar a ausência de consenso social quanto à defesa de antirracismo, direitos LGBTQIA+, pautas feministas etc. Faltou combinar com a América profunda (faça aqui seu paralelismo com o Brasil daqui dois anos).
Idealizando o passado, o discurso trumpista remete à noção de retrotopia de Zygmunt Bauman (1925-2017). Com o conceito, o sociólogo e filósofo polonês analisa o sonho de um mundo melhor não no futuro —-a ilha Utopia imaginada por Thomas More—, mas no passado.
Um passado inexistente de segurança, liberdade, prosperidade. Uma nostalgia enfumaçada de um pretérito idem. Mas assim são os sonhos, e a política se nutre deles.
Liberais democratas, por outro lado, focaram em conquistas concretas —crescimento econômico e pleno emprego à frente. Mas que se mostraram pouco efetivas para alterar a percepção de bem-estar num contexto de custo de vida alto.
Ou talvez seja a sobreabundância típica do capitalismo que faça a grama do vizinho parecer sempre mais verde. Terreno fértil para o ressentimento, afeto cuidadosamente cultivado por Trump desde sempre.
Instaurar o "grande de novo" nas condições atuais significa estar à beira do abismo e dar um passo à frente. Parafraseando Gandhi, Ailton Krenak pontua: "A Terra tem o suficiente para todas as nossas necessidades. Mas, se você quiser uma casa na praia, um apartamento na cidade e um Mercedes-Benz, não tem para todo mundo".
Um mundo em colapso demanda novos sonhos. Em termos de posse, certamente mais modestos. Menos ter e mais ser. Historicamente, americanos fizeram a opção por casa, carro, hipotecaram tudo, dobraram a meta. Comeram o mundo, acham pouco e querem repetir a aposta. Great again. Novamente conforme Krenak em "A Vida não é Útil", é como se dissessem: "'Mas, agora que chegou a minha vez, você vem me dizer que acabou a festa?'. Existe um desejo de que essa condição de consumo da vida se estenda por tempo indeterminado, sem que a máquina de fazer coisas precise ser desligada."
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