Na Bahia, amizades são arma contra evasão e repetência
Uma visão integral do estudante, com apoio aos processos de enturmação, enfrentamento de estigmas sociais e parcerias com a comunidade para acolher alunos e familiares: em Pojuca (BA), município situado a 75 km de Salvador, uma colaboração entre professores e gestores aponta caminhos contra as altas taxas de abandono e reprovação no Ensino Fundamental que marcam a educação brasileira.
Iniciado em 2018, com apoio do Itaú Social e da Fundação Carlos Chagas, o projeto propôs oito estratégias focadas na transição dos anos iniciais para os anos finais do Ensino Fundamental, momento decisivo para a vida escolar dos alunos, considerando as mudanças físicas, cognitivas e sociais que marcam a chegada da adolescência.
Segundo o Censo Escolar, os picos de reprovação, evasão e abandono ocorrem durante as transições de etapas da educação básica. Em Pojuca, o índice de aprovação da rede pública subiu de 73,8% para 90,3% na etapa de transição do 5º para o 6º ano, após quatro anos de implementação do projeto, com foco no acompanhamento integral dos estudantes.
Em entrevista à coluna, Olívia Maria Costa Silveira, ex-secretária municipal de Educação que coordenou a iniciativa, defende que o acolhimento deve ser o eixo central das estratégias adotadas pela escola. "Precisamos enxergar o estudante como um sujeito complexo, com a missão de fortalecer a sua sensação de pertencimento, assim como da sua família. A educação formal vai muito além da escola."
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Para começar, nos conte da cidade de Pojuca: de que município estamos falando, pensando no seu perfil socioeconômico?
Olívia Silveira: Pojuca é uma cidade da região metropolitana de Salvador, a 75 km da capital e cerca de 40 mil habitantes, com 17 escolas municipais em sua rede — três delas na zona rural e as outras no centro urbano.
Falamos de um perfil socioeconômico marcado por vulnerabilidades, ainda que, nos últimos tempos, isso tenha melhorado um pouco. A cidade, de modo geral, possui uma classe média pequena, nada muito diferente de municípios de médio porte, típicos da região metropolitana.
Como surgiu essa iniciativa focada na transição do Fundamental?
O projeto começou em 2018, no ano seguinte à divulgação de números do Ideb, que indicaram uma melhoria pequena nos dados do Ensino Fundamental de Pojuca. Precisávamos de uma análise mais detida desses indicadores.
Nesse contexto, ocorreu um episódio bem importante, que disparou uma reflexão. Após fazermos uma oficina entre escolas da rede, percebemos que havia um descompasso no diagnóstico dos anos iniciais e finais - enquanto as primeiras diziam que estavam entregando os meninos com as competências adequadas, as outras diziam que eles estavam aquém, o que gerou um momento de tensão.
Desde então, nosso objetivo foi entender o que levou a essa divergência de diagnóstico. Estudos revelam que essa passagem entre etapas — no caso, dos anos iniciais para os finais do Fundamental — é sempre crítica.
Ao fim, vocês chegaram a oito estratégias no sentido de fortalecer esse período de transição do Ensino Fundamental. Quais delas você destaca?
Um dos pontos que tratamos foi adiantar a pluridocência, ou seja, o aluno já tinha mais de um professor desde o 4º ou 5º ano, de modo que a transição fosse menos impactante.
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Quero receberOutra estratégia importante tratou do processo de enturmação, no sentido de sair do reforço de estigmas para um processo mais inclusivo. Para isso, foi importante observar as redes de amizade que foram se construindo nos anos anteriores, buscando ampliá-las organicamente.
Em outras palavras, você está falando de acolhimento. Demoramos muito para começar a olhar para esse aspecto?
Falamos de um modelo de apoio à transição numa perspectiva de acolhimento, direta ou indiretamente. Há uma questão crucial que é a perspectiva da escola como um direito de todos — não muito tempo atrás, se o aluno não se adaptasse, esse era um problema dele.
Hoje, se isso acontece, o problema está na escola, na rede, na política pública. Á medida que assumimos a responsabilidade de permanência e de aprendizado na escola, o estudante passa a ser visto como um ser complexo.
No fim do dia, percebemos que o fator acolhimento afeta, diretamente, diversos índices educacionais, para além das questões sociais que já são consolidadas há mais tempo no debate público.
A pandemia certamente ajudou a jogar luz sobre todos esses desafios, mas esse é um conhecimento que já vem de muito antes, com estudos da psicologia da aprendizagem, que remetem ao começo do século 20.
Segundo o IBGE, os números de abandono escolar no Ensino Fundamental atingiram um recorde de 400 mil alunos em 2023. Falta de interesse, necessidade de trabalhar e gravidez na adolescência são alguns dos fatores predominantes. O que a escola pode fazer de diferente para enfrentar essa questão?
Em 2010, no meu doutorado, fiz algumas entrevistas com egressos de um programa focado na juventude de 18 a 29 anos sem o Fundamental completo. A grande maioria desses egressos eram mulheres e várias delas relataram esse ponto: "As coisas iam bem até a 4ª série, de repente tudo mudou e eu engravidei".
Por que elas abandonam? Perguntei, imaginando que seria uma questão logística, mas não. A maioria delas abandona por constrangimento social — vergonha, maus olhares. Estamos falando de meninas, jovens sem acolhimento para a diferença, que é o caso da adolescente grávida.
Como equipamento público, a escola tem o dever de impedir a evasão desses jovens, seja em situações de gravidez ou relacionadas ao trabalho — nesses casos, para além do acolhimento, é preciso pensar em políticas públicas de garantia e sobrevivência.
O projeto fala em acompanhamento integral dos alunos. Qual o significado desse conceito para vocês?
Falo de um acompanhamento que não está preocupado somente com as questões cognitivas de aprendizagem. Além de verificarmos se o estudante aprendeu ou não, é importante analisar se ele está feliz, se houve uma boa integração, se ocorreu gravidez ou outras especificidades.
Em suma, é nos atentarmos às diversas dimensões desse sujeito complexo de que eu falei, de modo a fortalecer a sensação de pertencimento do educando e de sua família, entendendo a educação formal como algo que vai muito além da escola.
Outro eixo estratégico importante do projeto é a articulação entre educação, saúde e assistência social. Quais desafios vocês encontraram?
Isso, falamos de uma articulação da rede de proteção, mas adequando-a de acordo com as demandas de cada território. Muitas vezes, existem equipamentos, mas o grande desafio é fazer com que tudo isso seja, efetivamente, uma rede — o que demanda trabalho conjunto em diversos níveis.
Fazer intersetorialidade não é nada simples, porque nós não estamos acostumados a pensar de modo intersetorial. Continuamos a organizar a educação de forma compartimentada, não obstante todas as discussões sobre interdisciplinaridade etc.
O grande desafio, de fato, é reestruturar nosso modo de pensar. A modernidade construiu várias caixas e estamos nesse momento de quebrar essas pequenas estruturas. A escola não dará conta de tudo sozinha — ela sequer tem expertise para isso. No fim do dia, a escola também precisa ser acolhida.
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