Rodrigo Ratier

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Reportagem

Sede da próxima COP, Belém é campeã de favelas e encantou poetas

São 11h da manhã no Mangal das Garças, e as aves que dão nome ao parque, celebrizado no Calypso da diva paraense Joelma, estão alvoroçadas. Entre o borboletário e as palmeiras do lago, exibem-se num voo interesseiro. As pernaltas sabem que, a qualquer momento, um funcionário de uniforme azul virá aplacar a agitação.

O movimento atinge o ápice quando surge o cobiçado tesouro: uma bandeja plástica com seis quilos de tainha, da qual cada uma das cerca de 60 garças-branca-grandes pretende obter um naco. É o que efetivamente acontece, num banquete menos barulhento e menos beligerante do que um não iniciado poderia supor.

Não são aves do Mangal, explica o tratador. São animais de vida livre, que entram e saem do parque como e quando querem. O aprendizado da rotina faz com que parte das garças, trocadilho infame, só dê o ar da graça nos horários de refeição: 11h para o café da manhã, 15h para o almoço e 17h30 para o jantar.

No resto do dia, as aves costumam explorar as redondezas. As baías do Guamá e do Guajará, que banham a capital paraense, ou, quem sabe, um dos incontáveis igarapés que cortam a cidade. Nesses imundos braços de rio, a garça protagoniza um espetáculo comovente. Busca seu alimento em meio às águas putrefatas que cortam comunidades pobres da periferia e mesmo áreas centrais da capital.

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Metrópole de vocação ribeirinha, Belém fez com suas águas o mesmo que o resto do Brasil urbano: cresceu desordenada em seu entorno, asfixiou-as com esgoto e lixo, enterrou, drenou, retificou-as para dar espaço a massas áridas de concreto, tijolo e asfalto.

Favela próxima a Belém, capital do Pará
Favela próxima a Belém, capital do Pará Imagem: Getty Images/iStockphoto

Entre as capitais brasileiras, é a campeã no quesito favelas. Ao todo, 57% de seus 1,4 milhão de habitantes vive nelas, com acesso precário a água encanada, saneamento e coleta de lixo.

O marketing trombeteia a COP 30 como um "divisor de águas" nessa história. Daqui a menos de um ano, entre 10 e 21 de novembro de 2025, a cidade vai sediar o principal encontro ambiental do mundo. A previsão de receber 60 mil visitantes no evento é o de menos. "Legado" é a palavra-chave para uma fileira de mais de 30 obras simultâneas. São parques, viadutos, centros de negócio e convenções, novas avenidas e um BRT ligando as três principais cidades da região metropolitana: Belém, Ananindeua e Marituba.

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Praia Vai-quem-quer, em Cotijuba
Praia Vai-quem-quer, em Cotijuba Imagem: Rodrigo Ratier/UOL

Da Copa à COP, a promessa é de um novo tempo para as cidades-sede. Enquanto não chegam "melhorias nos terminais hidroviários que atenderão o fluxo turístico em direção às ilhas", conforme a propaganda do governo do estado, a travessia Belém-Cotijuba se dá em um modesto cais em Icoaraci, a 20 km do centro. Durante a semana, o trânsito caótico pode fazer o trajeto rumo ao porto levar até duas horas. Por sorte, é sábado.

Cauã (nome fictício*) ignora os mais de 90 assentos internos da embarcação de ferro que vai até a ilha. Prefere os fundos, de onde observa a chegada de dois barcos de pesca. Recorre ocasionalmente à área coberta para fugir do sol do meio-dia.

Cauã diz trabalhar desde os 8 anos. Começou consertando bicicletas em estacionamentos de supermercados. Aluno do 3° ano do Ensino Médio, estuda à noite no bairro Pratinha, próximo ao aeroporto. Larga os cadernos às 9h da noite, toma o ônibus em direção ao Mercado Ver-o-Peso e encontra sua equipe na pedra do açaí, região do mercado que recebe diariamente a carga da fruta.

Cauã trabalha como carregador. O açaí vem em cestos, chamados de paneiros, que comportam cerca de 15 kg cada. Há três meses no batente, Cauã começou carregando dois paneiros por vez. Estabeleceu a meta de quatro — 60kg a cada viagem entre as embarcações e as barracas. Diz que aguentar o tranco é uma questão de mentalização. O desembarque de cada paneiro vale R$ 1,50 ao carregador. Quem sobe na palmeira para coletar o fruto ganha R$ 30. No Ver-o-Peso, o paneiro sai entre R$ 75 e R$ 110.

"Ganho bem", diz o rapaz, estimando renda de R$ 6.000 por mês. Tem R$ 11 mil guardados ("bom dinheiro para quem tem 20 anos"), pretende prestar engenharia elétrica (faria Enem no dia seguinte), quer trabalhar forte enquanto jovem e se aposentar antes dos 50. O sonho é comprar um terreno, construir umas 15 ou 20 quitinetes e cobrar R$ 500 de aluguel em cada uma. "Faça as contas, é um bom dinheiro".

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No plano político, não espera nada da COP, e nas eleições municipais decidiu dar uma chance ao delegado bolsonarista Éder Mauro (PL), que perdeu no segundo turno. "Quis algo diferente do candidato apoiado pelo governo do estado". Igor Normando, prefeito eleito, é primo do governador Helder Barbalho. Ambos são do MDB.

Cauã diz que trabalha quando quer, geralmente de segunda a quinta, "às vezes de sexta". Não tem carteira assinada e, recentemente, ficou 15 dias fora de combate por causa de uma infecção intestinal. O patrão mandou um vale para os remédios e não cobrou. "Isso se chama amizade", diz ele, arregalando os olhos e pondo ênfase no fim da frase.

A lida no desembarque costuma ir das 22h às 3h da manhã. De volta para casa, Cauã dorme até meio-dia e leva a esposa à academia. É ela que ele pretende encontrar em Cotijuba na casa da sogra. Vai pedir que prepare um litro de camarão rosa comprado no porto. "Litro é litro, quilo é quilo", diz ele, mostrando a sacola plástica com algo em torno de 300 gramas do crustáceo. "Tudo pra mim".

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Em Cotijuba não há carros. O acesso à praia do Vai-quem-quer, numa diagonal oposta ao porto, é feito por motonetas. Elas puxam uma espécie de vagão que acomoda até oito passageiros, ao preço de R$ 20 pelo trajeto de ida e volta. A enseada emoldura uma imensidão de mar, onde bem ao fundo se vislumbra, ou se imagina, por sugestão do guarda-vidas, o arquipélago do Marajó. Os olhos custam a acreditar que o colosso líquido abrigue tanta, tanta água doce. "A foz do Amazonas é uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem", disse Mário de Andrade, o modernista, em O Turista Aprendiz, livro que resultou da viagem ao Norte, em 1927.

A maré alta da última lua cheia deixou um rastro de destruição. Derrubou mourões e escadas de acesso, fez tombar coqueiros sobre a areia, arrastou estruturas de contenção para o meio do mar. O problema, dizem os comerciantes, se tornou mais frequente nos últimos anos. Visível desde a orla, a litorânea Mosqueiro sofre com o mesmo problema. De lá também se avistam queimadas, que no início de novembro atingiram 44 comunidades.

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São tempos aflitivos. Em evento na UFPA, o reitor da Universidade conta que Belém já não tem o tradicional aguaceiro do meio da tarde, que servia de baliza para o agendamento de compromissos ("antes ou depois da chuva?"). O tempo segue seco. No domingo (10), a decolagem no Aeroporto Internacional revelava espessas nuvens de fumaça em região de mata.

Pôr do sol na baía do Guajará, em Belém
Pôr do sol na baía do Guajará, em Belém Imagem: Rodrigo Ratier/UOL

Mas Belém é foda, e antes que se critique a vulgaridade da frase, as reclamações devem ser remetidas a Mário de Andrade. Na praça da República, o terreno onde hoje fica o hotel Princesa Louçã já abrigou o icônico Grande Hotel Belém. Uma placa junto à entrada fala sobre a vontade do poeta modernista de passar uns meses morando por lá com "o direito de sentar naquela 'terrace' em frente das mangueiras tapando o Teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando um sorvete de cupuaçu", como contou ao amigo Manuel Bandeira.

E uma confissão: "Belém eu desejo com dor, desejo como se deseja sexualmente, palavra. Não tenho medo de parecer anormal pra você, por isso que conto esta confissão esquisita, mas verdadeira, que faço de vida sexual e vida em Belém. Quero Belém como se quer um amor. É inconcebível o amor que Belém despertou em mim".

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São mais variados e contraditórios os sentimentos evocados na Casa das Onze Janelas, antiga mansão, hospital, presídio e hoje centro cultural. Na exposição Olho da Onda, 28 jovens artistas se exprimem quanto ao lugar da Amazônia nos dias de hoje.

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São alunos da Universidade das Quebradas, e o olhar periférico — convite à "descolonização dos museus", conforme o curador Aldrin Moura de Figueiredo — vai da devastação literal da mata em chamas de Madson à onipresença da Nossa Senhora de Nazaré de Renan Souza; das "águas do céu", vistas pelos telhados das favelas de Camila Serrão ao "cataclismo místico" do ensaio fotográfico "amazofuturístico" de Catarina Palheta, Michx, Vitória Moraes e Karol Onça.

Floresta e cidade, sublime e revoltante, futurista e provinciana. Puro tacacá de Brasil, Belém se alaranja ao pôr do sol no rio Guamá. Os canteiros de obras já estão vazios, os museus encerram o expediente e, em Cotijuba, o último barco do dia vai partir. São 17h30. Para as garças do Mangal, é hora do jantar.

* Nome fictício para preservar o entrevistado, cujo depoimento se deu em conversa informal. Dados circunstanciais foram modificados para evitar sua identificação.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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