Rodrigo Ratier

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Opinião

Banimento de livros mostra que espírito do Escola Sem Partido segue vivo

Fundado em 2004, o movimento Escola Sem Partido foi pioneiro das hoje corriqueiras ações de ataque à docência no país.

Amparado numa perspectiva sem qualquer lastro em pesquisa, afirmava que os professores eram "militantes travestidos de educadores", prontos para "doutrinar" alunos para o comunismo. E que os currículos escolares e sua perigosa "ideologia de gênero" corrompiam os valores de crianças e jovens, encaminhando-os a um mundo lascivo que feria de morte a família tradicional.

Para "provar" tais teses, desenvolveu uma metodologia sem amparo científico - na verdade, uma falácia, que os manuais de lógica chamam de "exemplar saliente": o incentivo a denúncias de casos isolados, na ampla maioria das vezes distorcidos, para passar a ideia de que se trata da situação geral do ensino. Assim o ESP produziria "evidências" comprobatórias de que as escolas brasileiras eram uma mistura de União Soviética com Sodoma e Gomorra.

Com ações consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020, o Escola Sem Partido definhou. Mas suas lições de visibilidade não apenas continuam vivas como cresceram e se multiplicaram. Políticos, influenciadores e mesmo educadores em busca de holofote descobriram que a estratégia de fabricar pânico moral - um sentimento exagerado de medo em virtude de uma suposta grave ameaça social - agradava aos algoritmos das redes sociais e a um quinhão considerável dos eleitores.

Não foi à toa que o então candidato Jair Bolsonaro levou para a sabatina no Jornal Nacional, e 2018, um exemplo do livro "Aparelho Sexual e Cia". Numa fala repleta de mentiras, procurava defender que a obra "pervertia" crianças.

A argumentação já circulava desde 2016. À época trabalhando para a revista Nova Escola, fiz uma checagem de fatos sobre as justificativas de Bolsonaro.

Hoje, a história se repete com os mesmos ingredientes no episódio do recolhimento do premiado "O Avesso da Pele", do escritor Jeferson Tenório.

O epicentro da querela foi uma postagem de Janaina Venzon, diretora da Escola Estadual Ernesto Alves de Oliveira, em Santa Cruz do Sul (RS). Num vídeo de pouco mais de dois minutos, a diretora lê dois excertos do livro com descrições de cena de sexo que ela considera "nojentos". A responsabilidade, atribuída ao "Governo Federal" é verbalizada em uma pergunta em letras garrafais no texto que acompanha o filminho: "QUE PAÍS É ESTE?" [sic]

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A educadora indignada poderia ter buscado explicações na institucionalidade, recorrendo, por exemplo, à diretoria regional de ensino para entender o ocorrido. Ou pelo menos consultado seu próprio time de professores. Em vez disso, preferiu expor a "imoralidade" nas redes sociais.

Como na maioria dos usos da falácia do exemplar saliente, há na produção de Janaina uma quantidade pornográfica de desinformação.

Para começar, não foi o Ministério da Educação que enviou o livro, com a recomendação de que fosse trabalhado no Ensino Médio. Foi a própria escola quem o pediu, a partir de um cardápio aprovado por uma banca de especialistas (no caso de "O Avesso da Pele", a aprovação se deu ainda no governo Bolsonaro). O pedido foi feito utilizando o CPF da diretora. A escola tem autonomia para escolher os livros - se é que os quer.

Confrontada, Janaina disse que "estava averiguando" quem fez o pedido, que a coordenação pedagógica utilizava seu CPF para encomendar as obras junto ao MEC e que os professores não tinham tido acesso prévio ao livro. A sequência de justificativas está em seu perfil aberto no Facebook.

Reside aí, aliás, uma ironia. O fato de ela ter lido a obra com os "termos impróprios para menores de idade" na rede social amplificou o alcance do texto e tornou-os disponíveis a crianças de 13 anos em diante. Isso considerando a idade de corte oficial da plataforma, sabidamente desrespeitada. A intenção de "proteger" as crianças (as aspas são sempre de referências da diretora) saiu pela culatra.

Há outros equívocos, como dizer que a obra feriria o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ouvido em reportagem da Folha de S. Paulo, Ariel de Castro Alves, membro da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB, discorda.

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A maior distorção, porém, se dá pela descontextualização. Como diz Jeferson Tenório, os palavrões não estão lá gratuitamente e são acompanhados de uma reflexão, amputados pela leitura editada em prol do pânico moral ("é preciso proteger nossos alunos!").

A função da educação não deveria ser "proteger" seus estudantes, se por proteção se entende viver confinado a uma bolha de negacionismo do mundo, ignorando, por exemplo, que no Brasil a idade média da primeira relação sexual é de 14 anos para homens e 15 para mulheres; mais de 20 mil meninas com menos de 15 anos engravidam todos os anos; o racismo é um componente estruturante da sociedade brasileira e que a hiperssexualização do homem negro é uma de suas manifestações.

Uma escola preocupada em formar jovens preparados para tomar decisões conscientes e por conta própria deveria debater esses temas sem assombros, com a mediação e a contextualização adequadas. Além, de, é claro, familiarizar seus alunos com as produções culturais de excelência. "O Avesso da Pele", como se sabe, é vencedor do prestigioso Prêmio Jabuti de literatura.

Não é esse o caminho escolhido pelos ultraconservadores, herdeiros vitaminados do Escola Sem Partido. Cada um desses novos escândalos fabricados é uma chance a mais de aparecer, ganhar minutos de fama ou votos. Quando têm algum poder nas mãos, o estrago é pior.

Na aprovação da Base Nacional Comum Curricular, deputados da bancada evangélica saíram dando "control F" no documento do Projeto de Lei para limar do texto os termos "educação sexual" e "identidade de gênero".

Na literalidade que os caracteriza, acabaram varrendo do mapa até expressões como "gênero musical".

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Na aprovação do Novo Ensino Médio, conseguiram riscar do currículo a oferta de Sociologia e de Filosofia, disciplinas voltadas para a instrumentalização do pensamento crítico - ou simplesmente "comunistas", no olhar dos opositores.

Pressionados pelo contexto de um governo de coabitação - um executivo de centro-esquerda e o Congresso mais reacionário da história -, as camadas progressistas lamentam, mas acabam cedendo espaço. A escolha de Nikolas Ferreira (PL-MG) para a presidência da Comissão de Educação da Câmara não prenuncia dias melhores para uma educação a serviço do pensamento crítico e das discussões que realmente interessam.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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