Educação de qualidade pede reforma na segurança pública, diz especialista
Em meio a um crescente debate sobre a segurança no interior das escolas, estudos evidenciam como a política de segurança pública, gestada fora do ambiente escolar, está impactando o direito à educação de crianças e jovens. Em 2021, foram 269 escolas paralisadas somente no Rio de Janeiro e quase 700 em todo o país.
Publicada em outubro de 2023, a nota técnica "O impacto da violência armada no direito à educação", da ONG Dados para um Debate Democrático na Educação (D³e), se baseia num estudo de caso da favela da Maré, na zona norte do Rio — a região registrou fechamento de escolas por tiroteio no dia 9 de maio.
Propõe a seguinte reflexão: como pensar o direito à educação de forma articulada com a infraestrutura urbana e os fatores sociais que impactam, diretamente, a frequência escolar e o desempenho dos estudantes?
Em entrevista à coluna, a pesquisadora Shyrlei Rosendo dos Santos (Unirio), coautora da nota, propõe um diálogo entre diferentes instâncias no sentido de enfrentar os obstáculos à presença efetiva desses jovens na sala de aula: "violência não se resolve com carro da polícia em frente à escola".
Quais os seus objetivos com essa nota no contexto em que ela foi produzida?
A pesquisa foi realizada no final do ano passado — na época em que ocorreram ataques violentos a escolas no Brasil. Nosso principal objetivo era demarcar uma diferença entre a violência que ocorre dentro da escola, que é objeto de estudo e discussão há muito tempo, e aquela que acontece no entorno dela.
Desde 2016, temos visto um crescimento dos episódios, tanto no Rio de Janeiro, onde foi feita a pesquisa, como no resto do Brasil.
A nota enfatiza bastante essa diferença entre a violência de fora para dentro (armada) e a que acontece no próprio ambiente escolar. Essa última acaba ganhando mais foco do que deveria?
Sim. Partimos do princípio de que o direito à educação não se faz sozinho, pois não adianta termos uma escola bem equipada se o seu entorno não propicia que a educação se realize — falo de acesso à água, direito de ir e vir, acesso a um território seguro, um ambiente confortável etc.
Apesar das diferenças entre cada estado, vemos um padrão de criminalização da pobreza orientando, nacionalmente, as políticas de segurança pública nos últimos dez anos.
Na sua opinião, educação e segurança pública ainda são pensadas de forma muito separada no debate público? Se sim, quais as consequências disso?
Com certeza. Direitos não podem ser colocados em uma "caixinha". Precisamos entender, justamente, a amplitude do direito à educação — ele se faz com o direito à saúde, ao saneamento, à segurança, direitos da juventude, entre outros.
Educação, no Brasil, se resume a pensar no espaço, nos professores e nos equipamentos. Mas como esse direito vai se efetivar se não garantirmos o básico, que é o acesso?
Está em tramitação, na Câmara, o PL 5671/23, que obriga escolas públicas e privadas a adotarem medidas de segurança para prevenir e combater casos de violência em suas instalações — as medidas incluem desde treinamento de pessoal, botões de alarme, planos de prevenção, segurança na internet, entre outras. Como você vê essa iniciativa?
Isso é mais uma vez tratar o problema de maneira isolada, algo que já vimos ser feito no Rio de Janeiro, com o Estado admitindo que não tem controle sobre os territórios. Em vez de pensarmos ações para inibir a violência, passamos a responsabilizar os sujeitos da escola por isso — o que é muito cruel.
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Quero receberEvidentemente, o treinamento é importante, mas precisamos assumir que essa violência está constituindo o próprio território. Não é papel da escola liderar essas políticas de contenção.
A nota técnica propõe soluções concretas para o futuro, convocando instituições como o Ministério Público (MP) a agir. Quais as tarefas mais imediatas?
Precisamos partilhar as ações entre todas as instâncias que são responsáveis pelo direito à educação. O problema da violência não se resolve, simplesmente, com carro da polícia em frente à escola, mas com investimento na infraestrutura urbana, em ciência e metodologias de pesquisa.
Há bons exemplos do passado que nos ajudam, como o projeto de contraturno escolar da gestão Brizola (1983-1987, 1991-1994).
No fundo, há a discussão da vontade política, mas também dos recursos, que são mal distribuídos nos territórios — basta ver as ruas asfaltadas na zona sul do Rio e compará-las com as da Maré.
Olhando especialmente para o Rio, o estado é primeiro no ranking de denúncias de violência (desde física a psicológica) nas escolas, além de ser um dos líderes de interrupção escolar. É possível transpor esse debate para os demais estados, pensando em suas particularidades?
Sim, é possível. A política pública é fruto de um processo de diálogo, com autonomia dos estados. Nesse sentido, a nota propõe a criação de um observatório, com indicadores que nos permitam, por exemplo, aproximar a discussão do Rio com aquela de uma cidade como Feira de Santana, na Bahia (uma das líderes nacionais em homicídios por 100 mil habitantes).
Se trata de discutir: será que é hora de abrir mais escolas e criar mais atividades lá dentro, sem pensar no esvaziamento que é fruto dessas outras circunstâncias?
Além de pesquisadora, você é moradora da Maré. De que forma a experiência comunitária aponta caminhos para esses desafios?
Na Maré, nós viemos de uma longa tradição de busca por direitos — um traço das periferias urbanas. Essa participação ativa da população é decisiva e inovadora, apesar do medo que nos acompanha quando o assunto é segurança pública.
A experiência do morador tem muito a acrescentar à discussão, pois esse é um direito que nos afeta individual e coletivamente: não é porque eu nunca tive a minha casa invadida que o meu direito à segurança pública não foi violado.
É difícil, porque as pessoas, no fundo, estão cansadas. A política muda de quatro em quatro anos, com muito autoritarismo. No meio disso, o foco é buscar a criatividade no meio da resistência.
*Colaborou Rafael Burgos
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