Rodrigo Ratier

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'Pulei do 4º ao 6º ano': pandemia ainda afeta educação, diz pesquisadora

Oficialmente, a emergência de saúde pública internacional causada pela covid-19 terminou há cerca de um ano. Mas as marcas da pandemia em diversos aspectos da vida humana são persistentes. Na educação, ela intensificou velhos problemas e aprofundou desigualdades. Bons alunos que não conseguiram acessar as aulas online relatam "apagão" de aprendizagens durante os dois anos mais severos da crise sanitária.

São dessa ordem as conclusões de um grupo de pesquisadores de cinco países — Brasil, Austrália, Bélgica, França e Marrocos — que a Fundação Carlos Chagas (FCC) reuniu para debater o legado da pandemia na educação. O seminário, parte de um projeto da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), abordou os obstáculos e o que pode ser feito, em termos de políticas públicas, para superá-los.

Cinthia Torres Toledo, pesquisadora da Faculdade de Educação da Unicamp, é uma das participantes dessa rede de pesquisa, contribuindo com um estudo de campo realizado na periferia de São Paulo durante a pandemia. Em entrevista à coluna, ela conta como a experiência brasileira se compara com a dos demais países.

O que a pesquisa internacional busca entender sobre o impacto da pandemia na educação?

CINTHIA TORRES TOLEDO - Esse projeto nasceu, dois anos atrás, a partir de um edital da Fapesp, com foco em pensar a recuperação da pandemia em diferentes áreas do saber, a partir de parcerias com pesquisas internacionais. Como esses estudos já estavam em andamento, nós criamos uma rede de diálogo para discutir esses contextos.

O que acontece quando a escola passa a funcionar em casa? Essa foi a pergunta que guiou todas as equipes. E o diferencial do estudo foi olhar para práticas e experiências nessa perspectiva comparada, ou seja, entender como as famílias lidaram com cada desafio — seja mediar a aprendizagem em casa, ou o desafio dos professores, dos estudantes, das escolas etc.

Outro ponto que uniu todos foi a preocupação com o aumento das desigualdades na pandemia, pensando no impacto sobre as escolas.

Olhando para essa escola que passou a funcionar em casa, em diferentes partes do mundo, o que foi possível observar?

Uma das coisas que identifiquei em nossa pesquisa é que nem todos os estudantes voltaram para a escola ainda — um aumento muito grande na infrequência, que não está sendo muito discutido no Brasil, somente em outros países.

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Outro ponto importante: em nossa pesquisa, que foi feita na rede municipal da periferia de São Paulo, constatamos que a maior parte das crianças sequer conseguiu estudar durante a pandemia.

Em São Paulo, a estratégia da Secretaria Municipal de Educação foi enviar, via correio, livros impressos para os alunos. Mas, na prática, esses materiais não chegaram a todas as crianças, devido a desigualdades socioespaciais, dificuldades de logística na distribuição, entre outras questões.

Resumindo, está evidente que as atividades impressas não deram conta de garantir a aprendizagem durante a crise sanitária. E, com um ano de suspensão das aulas, há ainda um déficit de interação que prejudica muito as crianças.

O ensino remoto ampliou desigualdades?

A Prefeitura de São Paulo fez uma parceria com o Google, criando a sala de aula virtual, mas a maioria das crianças teve dificuldades de acesso à internet. Então, meses depois, tiveram a iniciativa de emprestar tablets aos alunos. A previsão de chegada era de 60 dias para a população mais vulnerável, mas, na prática, só chegaram entre agosto e outubro de 2021.

Até lá, muitas escolas já tinham voltado ao modelo híbrido. Quando conversamos com essas crianças, muitas dizem que, antes de receber o tablet, não conseguiram estudar, seja pela ausência de um smartphone ou pela dificuldade de acesso à internet. Isso é muito triste.

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Tem, também, o lado do professor: imagina dar aula numa plataforma para dois, três alunos, percebendo que a maioria da sala estava ausente? Foi um período de muita criatividade para pensar estratégias, mas também de muita angústia para os docentes.

Voltando ao tema da infrequência escolar e o resultado observado na rede. O que vocês descobriram?

Na prática, a pandemia levou a dois anos de interrupção do funcionamento regular das escolas municipais. Nas palavras das crianças, foi um momento de ruptura. Alunos que estavam no 4º ano e, de repente, quando voltaram as aulas regulares, se viram no 6º ano, mostrando dificuldades que nunca tiveram em seu desempenho escolar.

Essa experiência da ruptura está diretamente ligada ao aumento da infrequência. E, vale dizer, esse não é um problema exclusivo de lugares vulneráveis — países como Inglaterra, Austrália e Estados Unidos também estão discutindo essa questão.

O objetivo desta rede é criar um espaço de reflexão sobre as desigualdades educacionais, olhando para essas diferentes perspectivas, confrontando hipóteses e observando cada contexto.

Você mencionou a criatividade que surgiu nesse período. É possível falar em algum outro legado que pode ser aproveitado no futuro?

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É muito difícil falar em "coisas boas", considerando todo o impacto da pandemia no Brasil. Mas, pensando na reflexão sobre as desigualdades educacionais, com certeza, há iniciativas potentes de resposta à crise — nossa rede de pesquisa é um exemplo disso.

Além disso, tenho olhado bastante para o Ensino Fundamental 2, que é o período em que as desigualdades sociais começam a se aprofundar. É triste observar o número de crianças do 6º ano sem ler e escrever, por exemplo. Como elas vão realizar as atividades? Não tem proposta de recuperação para elas, pois as estratégias estão voltadas ao 7º ano.

Por outro lado, vale dizer, professores têm dito que nada mudou, pois sempre houve alunos nesse período com dificuldades para ler e escrever. Nosso legado é levar a sério o diagnóstico desses docentes, ou seja, entender que a pandemia intensificou um problema que já existia — lidar com os excluídos da educação.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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