Rodrigo Ratier

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Opinião

Expulsar aluna por ato racista expia culpa, mas não resolve nem educa

O contexto evita equívocos. Recorro a essa frase, que tantas vezes me salvou de juízos apressados, para comentar o caso de racismo ocorrido na Escola Vera Cruz, um dos mais tradicionais colégios particulares de São Paulo. O caso é muito triste do início ao fim: um grupo de garotas pegou o caderno de uma das filhas da atriz Samara Felippo e do ex-jogador de basquete Leandrinho. Arrancaram páginas de uma pesquisa e devolveram o objeto ao achados e perdidos com pesadas ofensas de cunho racista. Identificadas, as autoras foram punidas com suspensão por tempo indeterminado, uma sanção tida como branda por parte da comunidade escolar e pelo tribunal das redes sociais. O clamor é pela expulsão.

À primeira vista, faz sentido exigir o banimento. A ocorrência é de fato indignante, racismo é crime e não pode ser tolerado. Esse mesmo olhar de fora, superficial, adiciona outros elementos. Acusa-se a escola, de "alto padrão" e mensalidades elevadas, de estar sendo conivente, passando pano para famílias da elite branca. Denuncia-se que o projeto antirracista do colégio seria mera fachada. Afinal, a violenta ocorrência de racismo seria uma evidência de que os esforços, se é que existiram, teriam "falhado miseravelmente", nas palavras da atriz.

O contexto evita equívocos. O fato é grave e demanda punição; a solidariedade à vítima precisa ser irrestrita. Todo o resto pode — e eu diria que precisa — ser debatido. Abro aqui um parênteses em primeira pessoa: durante dois anos, fui o editor da revista de educação antirracista do Vera Cruz. Como homem cis branco, portanto em condição de privilégio de gênero e raça, foi um período de intenso aprendizado e, muitas vezes, de desconforto. É impossível olhar para a questão racial sem questionar em que medida contribuímos, por ação ou omissão, para a reprodução da sociedade racista em que vivemos. Aparece a vergonha, a culpa também, que precisam ser escutadas e trabalhadas para desencadear mudanças reais. A experiência representou para mim um despertar, ainda que tardio, para o componente racial como um dos principais — e aqui me questiono se o artigo indefinido e o plural são mesmo necessários — desencadeadores de todas as demais desigualdades da modernidade.

Desse lugar, como se diz hoje em dia, proponho olhar para essa situação a partir de um outro ponto de vista: o da escola. Reflito sobre o que faria se estivesse na posição da direção e das coordenações. O mais confortável — se é que possível falar em conforto num caso desses — seria atender ao punitivismo. Expulsão e pronto. E que ninguém ouse pensar em fazer algo semelhante porque o caminho será a porta da rua. Caso encerrado. Ou enterrado. Sufocado talvez seja o mais preciso.

Seria essa a opção de 11 entre 10 escolas, com o impacto de uma mensagem firme contra o inominável. "Não nos misturamos com racistas" seria o comunicado público. Mas, se a consciência coletiva tivesse um bom analista e pudesse falar, o recado provavelmente seria outro: "Não queremos entre nós essa gente indigna de frequentar o ambiente imaculado de uma certa esquerda progressista que nunca erra."

A escola optou pelo caminho incômodo. Contratou o problema para si, trouxe o desassossego para dentro de seus muros e recusou falar em expulsão — embora desde o início tenha reconhecido a gravidade do fato e a necessidade de consequências duras, de que as meninas se responsabilizassem pelo que fizeram. A "tese" da compra de silêncio não para de pé pela própria sequência dos fatos: como era previsível, as famílias das agressoras, sob intensas críticas ("não deram valores a essas meninas!") vão tirar suas filhas do colégio. Ao menos uma delas já anunciou a saída ontem (29), numa mensagem dos pais ao grupo da classe a que a coluna teve acesso.

O contexto evita equívocos, e nesse caso o que ele evidencia é um compromisso com a educação.

Compromisso que:

  • Começa no olhar para as envolvidas como personalidades em construção. Não se trata de considerá-las inimputáveis, mas de respeitar a concepção de infância e adolescência presente no próprio regramento jurídico brasileiro. Tanto a Constituição Federal de 1988 quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente consideram crianças e adolescentes sujeitos em formação;
  • Prossegue no reconhecimento de que houve um ato gravíssimo em que o acolhimento à vítima é a providência fundamental;
  • Considera que a educação tem ferramentas para encaminhar mesmo a mais espinhosa das situações. E que a finalidade do ensino é levar crianças e adolescentes a pensar e agir por conta própria. Isso é basicamente o contrário do medo da punição;
  • Investe no desenvolvimento da autonomia como objetivo da educação. Crianças e adolescentes compreendem que não se pode ser racista porque isso é eticamente inaceitável. A regra é respeitada porque entendida pelos sujeitos como justa e necessária -- e não porque (ou não apenas porque) haverá punições.
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Coisa de sonháticos, pode-se replicar, a que cabe a tréplica: a educação em seu sentido mais generoso é isso mesmo, é uma crença no ser humano, é essa esperança de que todos e todas podem aprender. Mas a educação não pode ser apenas esse desejo. É também uma ciência, o que significa que o idealismo precisa vir acompanhado de rigor pedagógico, com estudo aprofundado e as melhores estratégias para se aproximar, tanto quanto possível, da transformação almejada.

Existem, sim, projetos escolares de educação antirracista apenas de fachada, uma commodity como parque aquático, ensino bilíngue ou espaço maker para preencher a lista de seduções às famílias em período de matrículas. Mas o contexto evita equívocos e, de onde eu vejo, o projeto antirracista da Escola Vera Cruz tem consistência e rigor científico. Envolve um programa de bolsas para pretos, pardos e indígenas que garante 13 anos de gratuidade; uma política de contratação de professores e gestores que amplia a proporção de pretos, pardos e indígenas e os coloca em posição de liderança; uma revisão curricular profunda e democrática; uma metodologia complexa, amparada nas boas práticas de educação antirracista; uma equipe de apoiadores de referência na área, de Sueli Carneiro a Lia Vainer Schucman, de Sílvio Almeida a Cida Bento; uma disposição quase exaustiva para a autoavaliação periódica e constante.

Trata-se de um projeto reconhecido em nível internacional por sua consistência. A evidência mais relevante foi o convite do Instituto Luis Gama a Juliana de Paula Costa, coordenadora da escola, para discursar na ONU durante a 3a Sessão do Fórum Permanente de Afrodescendentes em Genebra.

É um tanto ilusório acreditar que um programa de educação antirracista, por melhor que seja, possa extirpar num passe de mágica o racismo. Em muitos casos, pode ocorrer o contrário, porque a discussão sobre o tema gera a quebra do silêncio e constrói um olhar mais atento, visibilizando situações que antes sequer eram reconhecidas como racismo. Outra possibilidade apontada é que a quebra do racismo institucional leve, num primeiro momento, ao aumento do racismo interpessoal. São situações que começam a ser mapeadas por estudos da área e que mostram a complexidade de desarmar uma bomba jogada no bolso de todos nós por quatro séculos de escravidão.

É preciso coragem para bancar a escolha de uma punição proporcional à gravidade do ato, mas que não seja a expulsão. Coragem para provocar uma comunidade majoritariamente branca a se olhar no espelho e a se reconhecer, em maior ou menor grau, seu próprio racismo, quando afastar o corpo estranho e desviante bastaria para expiar a culpa e realizar o justiçamento demandado nesses tempos apressados e irrefletidos.

Não poderia ser outra a escolha da educação. Educadores sempre torcem para que os episódios sejam "pedagógicos". É essa também a minha torcida, a de que a escola, alunos, famílias e funcionários possam olhar para o episódio com a serenidade possível, e que o diálogo e o rigor do saber específico da educação auxilie cada um e cada uma em sua própria reflexão sobre raça e racismo. Como o contexto evita equívocos, penso que o Vera Cruz esta à altura do desafio.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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