Novo ensino médio: formados não se veem prontos para vida ou trabalho

A primeira pesquisa realizada com concluintes do novo ensino médio (NEM) registra ampla desaprovação da mudança curricular. As queixas incluem a redução das disciplinas básicas, a impossibilidade de cursar as optativas desejadas, o não cumprimento das promessas de ampliação de carga horária e a sensação de concluir a etapa sem os conhecimentos básicos para o vestibular, a vida em sociedade ou o mercado de trabalho.
As indicações aparecem no estudo recém-lançado pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu), que envolve professores e pesquisadores de universidades, institutos e escolas públicas de São Paulo. A pesquisa aplicou questionários a 696 estudantes do 3º ano do ensino médio em sete escolas da rede estadual de São Paulo, apoiadas desde 2019 pela Repu. A rede estadual paulista tem cerca de 5.000 escolas.
"Essas sete escolas pediram o apoio da universidade ao perceber que a reforma traria muitos prejuízos à formação crítica e científica dos estudantes. Buscamos auxiliar com uma atuação que minimizasse as perdas que efetivamente ocorreram com o NEM", afirma Marcia Jacomini, professora da Unifesp e coordenadora da pesquisa. "Certamente as situações relatadas não aconteceram apenas nas escolas sondadas."
São Paulo é o estado mais precoce na implantação do novo ensino médio, mudança curricular sancionada ainda no governo Temer e que pode ser alterada hoje (20) em votação no Congresso. A rede paulista é a primeira a ter formandos no novo modelo.
- As percepções são majoritariamente negativas: 87% dizem desaprovar o NEM e 93% afirmam que ele deveria ser cancelado.
"O estudante tem a percepção de quanto ele perdeu", diz Marcia. "Ele vivenciou ausência de aulas, teve disciplinas com professores sem formação adequada e um conjunto enorme de componentes curriculares sem contribuição para a continuidade dos estudos ou o ingresso no mundo do trabalho."
- Quanto ao vestibular, 85% dizem não se sentir preparados para o Enem e outros exames.
- A redução da carga horária de disciplinas tradicionais de 2.400 para 1.800 horas é a principal queixa.
- Para 79% dos estudantes, a diminuição vai impactar negativamente suas vidas.
- A parte diversificada do currículo também recebe críticas: 81% se dizem insatisfeitos com as disciplinas optativas que cursaram.
- Dois em cada três alunos afirmam não ter cursado o itinerário formativo -- a parte flexível do currículo -- de sua preferência.
Márcia aponta falta de clareza e excesso de opções. "Em São Paulo, até 2023 tivemos 11 itinerários formativos com 276 disciplinas — sem contar a educação profissional. Os alunos nem sequer sabiam o nome de várias que haviam cursado. Quanto aos professores, houve casos de um mesmo profissional ministrando dez disciplinas diferentes."
- A expansão da carga horária foi outra promessa do NEM que não se concretizou plenamente: 38% dos estudantes dizem que a escola não ofereceu as chamadas "aulas de expansão" (20% não se lembram).
- Mais grave ainda, 62% afirmam não ter frequentado as novas aulas (13% diz que "quase não frequentou" e 11% diz ter frequentado "mais ou menos").
A situação mais complicada é a dos cursos noturnos. "A expansão se deu com a oferta de uma aula antes das 19h. Os alunos que trabalham são maioria e relatam que não conseguiam chegar no horário. Quando a aula extra era remota, os alunos em geral nem entravam", comenta Marcia.
A expansão da carga horária é positiva, mas não pode ser pensada desconectada de outras políticas públicas que garantam que o estudante esteja efetivamente na escola.
Marcia Jacomini, professora da Unifesp e coordenadora da pesquisa
'Reforma da reforma' não resolve
Para Marcia, as mudanças que o Congresso deve aprovar no projeto do novo ensino médio não serão capazes de reverter os prejuízos que a mudança curricular trouxe aos alunos. Apesar da "devolução" das 2.400 horas para as disciplinas do núcleo comum, dois pontos preocupam: a autorização para aulas a distância e as 1.800 horas para as matérias obrigatórias na educação profissional, carga vista como insuficiente.
"Quanto ao ensino a distância, a experiência dos estudantes é péssima, seja na pandemia ou no NEM. Para os itinerários profissionais, 1.800 horas do núcleo comum significa uma formação muito rebaixada do ponto de vista humanístico e científico", diz a professora da Unifesp.
Na visão da especialista, o NEM deixa um legado de ampliação das desigualdades, uma vez que a proposta apresenta maiores fragilidades nas escolas públicas do que nas privadas — e, dentro das públicas, atingindo sobretudo os grupos mais vulneráveis, o dos estudantes de escolas com pouca infraestrutura ou do período noturno.
"Essa geração de concluintes é muito prejudicada", diz Marcia. "Vários alunos completaram o fundamental em ensino remoto por conta da pandemia. Depois, sofreram as perdas do NEM. Os alunos que entrevistamos se ressentem muito disso. Um deles nos disse: 'Perdi muito conteúdo, mas não tem volta. Infelizmente esse foi meu último ano'."
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