Professores convocam 'greve' contra apps do governo Tarcísio
Na tela inicial do computador do diretor de uma escola estadual na grande São Paulo está uma espécie de painel de controle com 17 aplicativos, que fornecem uma visão geral de sua escola.
"O 'Aluno presente' é para marcar faltas. 'Tarefa SP' é de lição de casa", enumera o diretor. "'Khan Academy' e 'Matific' são de matemática, 'Redação Paulista' para escrita de textos e esse tal de 'Elefante Letrado' [app de alfabetização] não sei bem para o que funciona."
Em tese, cada uma dessas plataformas deveria servir para auxiliar o ensino e a aprendizagem. Na prática, segundo professores, alunos e familiares, elas têm transformado as aulas em cursos a distância, retirado a autonomia dos professores e ampliado os mecanismos de controle sobre estudantes e docentes.
A insatisfação virou uma espécie de paralisação, a "greve dos aplicativos", movimento puxado pela Apeoesp para denunciar o uso impróprio e excessivo da tecnologia na rede estadual paulista. "A partir de segunda-feira, 13 de maio, professores e professoras não devem utilizar aplicativos e plataformas digitais, exceto para registrar a aula dada e a presença de estudantes e professores. Demais aplicativos e plataformas, slides, apostilas digitais não devem ser utilizados", sugere o informe da categoria.
Para o diretor ouvido pela coluna, que pediu anonimato por temor de represálias, a expectativa é de um movimento pequeno, mas que sirva para chamar a atenção do que está ocorrendo. "Como a gestão Tarcísio de Freitas [Republicanos] não tem mecanismos de política educacional, cria mecanismos de controle", afirma. "A aula do professor não tem espaço pelo uso obrigatório das plataformas."
A Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (Seduc-SP) diz que cabe a cada professor a decisão de como usar as plataformas (veja resposta detalhada no final do texto). Mas uma resolução do governo Tarcísio estabelece o uso das plataformas como um critério de avaliação dos diretores. Os mal-avaliados podem ser removidos para outras escolas.
Aulas padronizadas, aulas a distância
Na descrição do gestor, o controle atinge mesmo as aulas "normais". A secretaria orienta o uso do material fornecido pelo Centro de Mídias — cada uma delas tem slides padronizados que devem ser projetados em sala com o conteúdo a ser ensinado. A seguir, o professor precisa acionar o aplicativo de tarefas — também pré-prontas — e fiscalizar quem entregou ou não. Se não gerar tarefas, pode receber uma notificação do diretor da escola.
"Isso para não falar no conteúdo, que é horroroso e muitas vezes sem conexão com o currículo paulista", afirma o diretor. Uma das aulas digitais do 2º ano do ensino médio utilizou um vídeo do Movimento Brasil Livre (MBL) para falar sobre grêmios estudantis. O material do 3o ano incluía um texto da Brasil Paralelo, produtora conservadora que chegou a produzir conteúdos negacionistas sobre mudança climática.
Quanto às aulas dadas apenas por plataformas, Marcia Jacomini, professora da Unifesp, estima que elas cheguem a um terço da carga horária total no ensino médio. Os aplicativos de matemática lideram as queixas dos alunos.
"Os estudantes simplesmente não compreendem a Khan Academy. Ela pretende ser autoexplicativa, mas não cumpre essa função. O Matific pode até ser interessante para crianças mais novas, mas tem sido usado com turmas de 8º e 9º anos que consideram os conteúdos infantilizados. O governo de São Paulo está pagando pelo uso de plataformas prontas que não passaram pelo crivo de especialistas em educação", completa Márcia.
"Não há qualquer concepção de educação embasando o atual uso dos aplicativos. É um bom negócio para quem produz esses aplicativos, tablets e computadores que vão ser vendidos para as redes", afirma a professora da Unifesp, que não se diz contrária ao uso da tecnologia em sala de aula.
As plataformas podem, sim, contribuir com o processo de ensino e aprendizagem. Para que elas tenham essa função, elas não podem ser impositivas. Devem ser uma estratégia a mais à disposição de professores e de alunos.
Marcia Jacomini, professora da Unifesp
Essa, porém, não é uma opção na rede paulista. Uma resolução da Seduc de janeiro de 2024 afirma que a avaliação dos diretores de escola leva em conta quatro critérios — um deles é o uso das plataformas digitais.
A coluna apurou que ao menos os gestores de Sorocaba foram alertados pela secretaria, por meio de circular, de que a adesão à greve das plataformas representava "ato de desobediência e/ou insubordinação" à legislação. O mau desempenho na avaliação pode levar os diretores a um curso de recapacitação ou à remoção para outra escola.
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Quero receberAtaque à liberdade de cátedra
Para a professora da Unifesp, quem desrespeita a legislação é a própria Seduc — e num nível bem mais elevado, o da Constituição Federal.
"O uso obrigatório das plataformas atenta contra a liberdade de cátedra garantida pela Constituição. A liberdade de ensinar e aprender é o processo em que o professor dialoga com as políticas educacionais e estabelece, na concretude de seu espaço escolar e de suas turmas específicas, como organiza o conteúdo e faz o trabalho em sala. Na concepção da rede estadual paulista, o único papel do docente é garantir que os alunos entrem na plataforma", diz.
Procurada para comentar a greve das plataformas, a Seduc-SP respondeu por meio de nota que "está aberta ao diálogo e apoia a livre manifestação em âmbito democrático". Defende que as plataformas digitais são "recursos tecnológicos agregadores na produção pedagógica desenvolvida em sala de aula", e auxiliam na melhoria constante do ensino para todos os estudantes. "De maneira alguma, elas substituem o trabalho do professor."
Em relação à autonomia docente, afirma que "cabe ao professor decidir como utilizar as plataformas oferecidas pela Seduc-SP", e que o processo de avaliação do desempenho do diretor da escola "é muito mais abrangente e envolve também indicadores de frequência escolar, participação nas avaliações bimestrais e vulnerabilidade, não havendo qualquer menção específica para aqueles que tiverem indicadores insatisfatórios no uso das plataformas." O artigo 2º da resolução, porém, menciona explicitamente o critério na avaliação:
Artigo 2º - A avaliação de Desempenho será constituída pelos seguintes indicadores:
I - Frequência escolar;
II - Participação nas avaliações bimestrais;
III - Uso das plataformas digitais;
IV - Índice de vulnerabilidade da unidade escolar.
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