Rodrigo Ratier

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Opinião

Dobradinha Elon Musk-Arthur Lira enterra ótimo projeto de lei

E venceu a aliança do atraso disfarçado de vanguarda com a vanguarda do atraso. A improvável e compreensível dobradinha Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), e Arthur Lira, dono do centrão, ajudou a martelar os últimos pregos na tumba do projeto de lei 2630, erroneamente apelidado de "PL das fake news". Uma pena, pois o substitutivo, relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) e que estava pronto para ser votado no ano passado até sofrer um ataque conjunto de big techs e bolsonaristas, que ora se repete, é um ótimo projeto.

Você já o leu? Deveria. Leis não são leitura fácil, mas nossa urticária em entendê-las nos torna reféns de interpretações interessadas. E no caso do PL 2630, Musk-Lira as resumem bastante bem: "censura", "ataque à liberdade", "ditadura".

Nada poderia estar mais longe do espírito desse projeto de lei, que visa instituir -- atenção para o nome oficial -- a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. É uma engenhosa proposta, amparada em boas práticas internacionais, para enfrentar um dos maiores desafios do nosso tempo: a necessidade de regular as redes sociais.

Há basicamente três jeitos de fazer isso.

  • O primeiro é autorregulação, em que as plataformas definem as próprias regras sobre o que pode e o que não pode ser postado, quem é suspenso, banido ou, por outro lado, quem é recompensado pelo algoritmo com exposição de conteúdo a mais gente. É o que rola hoje, e só o fato do mundo inteiro estar discutindo regulação de redes indica que esse caminho deu muito errado.
  • O segundo é a regulação estatal, em que o poder decisório sobre os conteúdos está 100% na mão do estado. Esse modelo é típico de regimes ditatoriais e tem servido, ao longo da história, a episódios de censura prévia e a limitações indevidas à liberdade de expressão.
  • O terceiro, defendido pelo PL 2630, é a chamada autorregulação regulada, uma espécie de caminho do meio em que, por meio de uma lei, a sociedade -- e não o governo de turno -- estabelece os parâmetros gerais para ordenar a publicação de conteúdos nas redes. A observância aos princípios cabe às plataformas (por isso é autorregulação), cabendo ao governo fiscalizar (por isso é regulada), periodicamente e sempre a posteriori (por isso não faz sentido falar em "censura").

E quais são os tais parâmetros básicos sobre o que pode e o que não pode publicar? O PL define o que é fake news e precisa ficar de fora?

Não há definição de fake news -- e isso é uma das vantagens do projeto (considerando sempre o substitutivo enviado em 2023). Para fugir da armadilha de determinar o que é fake (algo que carece de consenso mesmo na academia e que envolve aspectos subjetivos e difíceis de aferir, como a intencionalidade em enganar), o PL elege temas específicos em que as plataformas devem ficar de olho.

Na linguagem da lei, as plataformas devem ter "dever de cuidado". Ou seja, "atuar diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços" em relação a sete temas prioritários. Vale dizer que todos eles são crimes:

  1. crimes contra o Estado democrático de Direito
  2. atos de terrorismo
  3. crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação
  4. crimes contra crianças e adolescentes
  5. crime de racismo
  6. violência contra a mulher
  7. infração sanitária (contrariar, por exemplo, as recomendações técnicas em caso de pandemia)

E o que exatamente as plataformas precisam fazer?

Em situações normais, precisam comprovar, por meio de relatórios periódicos, que estão se esforçando para evitar a disseminação de conteúdos com esses tipos de crime. Que estão implementando medidas capazes de diminuir os riscos que as redes promovem. Isso pode ser feito com ajustes no algoritmo, na moderação de conteúdos e na responsabilização de usuários, com consequências que vão da advertência à exclusão. O projeto prevê, ainda, que os usuários sejam notificados das infrações e que possuam direito de defesa -- hoje não se garante nem uma coisa nem outra.

Ainda nesses períodos normais, as plataformas não são responsabilizadas por monitorar cada conteúdo ilegal. A ideia é que façam um esforço sistêmico para tentar garantir que o ambiente das redes, como um todo, seja menos tóxico.

Traduzindo: pede-se apenas que elas se autorregulem adequadamente em relação a tópicos que já são crime.

A coisa muda em momentos excepcionais -- por exemplo, no caso de uma sequência de ataques violentos a escolas com disseminação de conteúdo pelas redes. Nesses casos, o PL prevê uma "virada de chave" temporária. A pedido da Justiça ou do órgão regulador, pode-se instaurar o chamado protocolo de segurança por 30 dias, prorrogáveis por mais 30.

Durante a duração do protocolo, "os provedores poderão ser responsabilizados civilmente pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros quando demonstrado conhecimento prévio". A prova do conhecimento é o registro da notificação do usuário à plataforma.

Em linhas gerais, é isso o que propõe o PL enterrado pelo consórcio Elon Musk-Arthur Lira. Pelas razões conhecidas de um e de outro, é esperado que os dois sejam contra qualquer ordenamento da cretinice perigosa que se tornaram as redes sociais. Ambos se alimentam de desinformação. Mas e nós? Devemos ser contra o ordenamento?

Para ser mais específico: devemos ser contra ESSE ordenamento? Há formas e formas de regular as redes e de fato algumas podem redundar em ameaças à liberdade de expressão. Penso que o PL 2630 não faz isso. É um jeito elegante de por algum juízo na bagunça, com baixo risco de injustiça e mandando a conta do serviço -- porque regular custa caro, exige tecnologia e muita gente para vigiar e prestar contas -- a quem precisa pagar por ele: as plataformas.

Há, sim, pontos polêmicos no projeto, relativos à extensão da imunidade parlamentar às redes sociais, à instância fiscalizatória (qual órgão, existente ou a ser criado, vai cobrar que as plataformas cumpram a lei)e à remuneração do jornalismo (esse último ponto já retirado da versão mais atual). Um pouco de discussão séria e técnica daria conta de equacioná-los. Em vez disso, prefere-se arremessar no lixo uma boa proposta de lei, construída de forma coletiva por gente que efetivamente entende do assunto.

Hoje, essa turma está brava e com razão não com os magnatas do vale do silício e com parlamentares golpistas -- deles não se espera apoio. Mas com o governo e sua base. Operando na frequência "esse é o Congresso que temos", novamente parecem não ter energia ou interesse em lutar por uma importante pauta progressista.

Lamente-se. Porque alguma regulação há de haver, e há terabytes de alternativas muito piores do que o PL 2630 à disposição do executivo, do legislativo e do judiciário.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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