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Ronilso Pacheco

Kamala Harris como vice de Biden é fruto e frustração de protestos de junho

Kamala Harris foi anunciada como vice-presidente de Joe Biden em corrida eleitoral nos EUA - Reprodução/Instagram
Kamala Harris foi anunciada como vice-presidente de Joe Biden em corrida eleitoral nos EUA Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

12/08/2020 10h07

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A escolha da senadora Kamala Harris, da Califórnia, concorrendo à vice-presidência dos EUA na chapa do democrata Joe Biden não chega a ser uma surpresa. A indicação está diretamente ligada aos protestos que se seguiram nos Estados Unidos, sobretudo em junho, como consequência do assassinato de George Floyd. As reivindicações, no entanto, não acabaram.

Biden sabe que ele não tem o coração da comunidade negra. Ainda que, a seu favor, conste toda a antipatia e resistência que Donald Trump tem inflamado em torno de si, desastroso na gestão da pandemia e radicalizando no discurso racial, Biden sabe que a desconfiança ainda impera.

Esta desconfiança é agravada em situações como a da semana passada, no dia 6, quando Biden fez um comentário infeliz ao comparar a diversidade nas comunidades latinas e afroamericanas. Na comparação, Biden se referiu à comunidade latina como mais diversa, "ao contrário da comunidade afro-americana". No Twitter, tentou desfazer a gafe.

Kamala Harris vem para estancar esta desconfiança e fortalecer a busca pelos eleitores negros, assim como das mulheres e dos imigrantes, sobretudo latinos, já que Harris foi procuradora-geral do estado com a maior população latina dos Estados Unidos.

Kamala Harris frequenta uma Igreja Batista negra, onde já fez parte do coral. Mas cresceu na Igreja de Deus, a segunda maior denominação pentecostal do mundo (atrás apenas da Assembleia de Deus). Esta trajetória é fundamental para ajudar a familiarizar a campanha democrata com a diversidade dos protestantes do país.

Ela também flerta com o hinduísmo, por causa de sua mãe, que é indiana, e o rastafarianismo —seu pai é da Jamaica, berço da religião. Harris é casada com um judeu. Se tem a antipatia dos evangélicos brancos conservadores por um lado, que rechaçam o ecumenismo e o diálogo interreligioso, a senadora conta com esta "vivência multireligiosa" para conquistar o diverso mundo de crenças dos que vivem nos Estados Unidos e podem votar.

Mas a tensão racial que pressionou Biden pela escolha de alguém com o perfil de Kamala Harris é o mesmo elemento pelo qual a escolha não há de ser celebrada de maneira inconteste. No núcleo das reivindicações dos negros nos Estados Unidos estão, tanto o fim da brutalidade policial, quanto uma reformulação radical da polícia e do sistema penal. A trajetória de Harris é frágil nos dois.

Ainda pesa fortemente sobre ela, enquanto procuradora-geral da Califórnia, a defesa da pena de morte no Estado, em 2014, contra uma contestação nos tribunais federais, que a considerava inconstitucional.

Também pesa sobre ela a falta de pulso firme contra o departamento de polícia de São Francisco (com um longo histórico racista), cujos policiais se envolveram no assassinato de um homem negro desarmado, Mario Woods, disparando contra ele mais de 20 vezes, em dezembro de 2015.

Evidentemente, Kamala Harris vem buscando fortalecer sua imagem "progressista" e a história pessoal de quem conviveu com defensores e ativistas dos movimentos pelos direitos civis. Quando o governador da California, o democrata Gavin Newsom, suspendeu a pena de morte no estado, Harris fez questão de comemorar em um tuíte. Também vai voltar a destacar seus pontos fortes, como seu programa de capacitação para evitar a discriminação na aplicação da lei e o programa que tornava dados da justiça criminal abertos ao público.

Mas o que ajudou a içar o nome de Harris para à vice-presidência (a onda de protestos após o assassinato de Floyd) é o que pode também oferecer a este projeto sua frustração (que, alias, não seria apenas dos Estados Unidos, mas de grande parte do mundo).

Um dos cartazes que circulavam entre manifestantes dos protestos de junho dizia "Not being Trump is not enough" (não ser Trump não é o suficiente). Este é um recado que reporta diretamente às decepções da comunidade negra com governos estaduais democratas, ou mesmo as gestões de Clinton e Obama, que não interferiram de maneira radical na excessiva violência da polícia e o encarceramento de pessoas negras.

Portanto, não está dado que Biden, ainda que assumindo a liderança na corrida, atraia para si o voto da comunidade negra —e nem está dado que Kamala Harris irá lhe trazer os votos suficientes e necessários de negros e latinos. É esta "massa cinzenta", entre a decepção dos descontentes e o silêncio sutil do evangelicalismo branco pró Trump, que pode nos surpreender.