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Ronilso Pacheco

Fundamentalismo corrompeu a fé cristã, diz autora de bestseller evangélico

Kristin Kobes Du Mez, autora do livro "Jesus e John Wayne", lançado nos EUA - Deborah Hoag/Divulgação
Kristin Kobes Du Mez, autora do livro "Jesus e John Wayne", lançado nos EUA Imagem: Deborah Hoag/Divulgação

26/09/2020 04h02

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Os Estados Unidos testemunham uma das mais acirradas e turbulentas eleições em décadas. No centro do debate estão a pandemia, mas também as tensões raciais que se agravaram desde o assassinato de George Floyd, e ganham novo combustível com o resultado do caso de Breonna Taylor, cujos dois policiais que participaram da operação que a assassinaram não foram acusados pela Justiça.

As tensões, os protestos, a violência, todo o contexto reacende o debate racial e o papel dos evangélicos brancos que seguem sendo a maior base de Donald Trump, sendo muitos nacionalistas cristãos, que apoiam sua visão de defesa de uma nação cristã, branca patriarcal, armada, xenófoba e homofóbica.

É sobre este cristianismo fundamentalista, tratado como "evangelicalismo branco", que a coluna conversou com Kristin Kobes Du Mez sobre seu recente livro "Jesus e John Wayne: Como os evangélicos brancos corromperam uma fé e fraturaram uma nação". O livro, sem tradução no Brasil, tornou-se um bestseller nos Estados Unidos e crucial no debate entre fé, política, nação e eleição em curso.

Du Mez é professora de história na Calvin University, em Michigan. É evangélica, de tradição calvinista e branca. Este é seu "lugar de fala" em um livro cuja pesquisa começou há mais de 15 anos, quando ela viu-se curiosa por esta construção de uma nociva "masculinidade evangélica".

Ela também mostra os papéis centrais exercidos pelas guerras nesse imaginário, como a guerra ao Iraque, a Guerra Fria, os ataques do 11 de Setembro ou a Guerra do Vietnã. "Para eles", diz Mez sobre o trauma do Vietnã, "parecia que a incapacidade da América de derrotar o Vietnã do Norte sugeria um problema com a masculinidade americana".

Du Mez também já teve seu contato com o contexto brasileiro, ao participar do webinário internacional "Evangélicos e Sociedade em tempos de Pandemia: Desafios para o Brasil e os Estados Unidos", em agosto, promovido pelo Djanira Instituto de Estudo e Pesquisa. Segue a entrevista:

UOL: A que você atribui o sucesso de um livro tão contundente e crítico quanto à contribuição dos evangélicos brancos para uma mentalidade patriarcal e violenta, que comprometeu a fé cristã?

Kristin Kobes Du Mez: Minha pesquisa sobre esse assunto começou há mais de 15 anos, quando alunos da universidade cristã onde ensino me apresentaram a literatura popular sobre masculinidade evangélica. Para minha surpresa, o homem cristão ideal era um guerreiro militante.

Deus era um deus guerreiro e, como o homem foi feito à sua imagem, todo homem tinha uma batalha pela frente. Isso foi durante a Guerra do Iraque, quando os evangélicos brancos apoiavam desproporcionalmente aquela guerra e a guerra preventiva em geral. Eles também eram mais propensos a tolerar o uso de tortura e a apoiar uma política externa agressiva. E então comecei a examinar como os ideais evangélicos de gênero e masculinidade podem estar ligados a esses compromissos mais amplos.

O resultado é "Jesus e John Wayne: Como os evangélicos brancos corromperam uma fé e fraturaram uma nação". É chamado de livro de "cotoveladas afiadas", mas, surpreendentemente, foi adotado por muitos evangélicos. Porque o livro apresenta o evangelicalismo como um movimento religioso e cultural, e por se concentrar na cultura popular evangélica, muitos evangélicos reconhecem suas próprias histórias como parte dessa história maior. Este é um mundo intimamente familiar aos evangélicos comuns. E, especialmente à luz do apoio evangélico a Donald Trump, muitos começaram a ver profundos conflitos entre uma ideologia de masculinidade cristã militante e os ensinamentos da Bíblia - ensinamentos como amar seu próximo como a si mesmo, dar a outra face e, de claro, as bem-aventuranças e os frutos do espírito.

Um dos pontos mais inovadores de seu livro é sua leitura do papel da Guerra do Vietnã como ponto de partida para a construção da mudança de papéis de gênero. Você poderia falar mais sobre essa ligação entre o desempenho dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã e uma masculinidade idealizada?

Foi nas décadas de 1940 e 1950, durante a Segunda Guerra Mundial e, em seguida, particularmente no contexto do início da Guerra Fria, que os evangélicos passaram a abraçar o nacionalismo cristão e o militarismo. Isso combinou com seu apoio aos papéis tradicionais de gênero. Mas, ao fazer isso, eles não eram tão diferentes de muitos outros americanos na época. Na década de 1960, entretanto, os valores que os evangélicos conservadores estimavam pareciam ter ficado sob cerco.

O movimento pelos direitos civis desafiou a autoridade dos evangélicos brancos do sul, o movimento feminista minou os papéis "tradicionais" de gênero e o movimento anti-guerra parecia ameaçar a segurança nacional. À medida que outros americanos começaram a questionar o status quo e a repensar o papel dos Estados Unidos no cenário mundial, particularmente na guerra do Vietnã, os evangélicos americanos se dobraram em apoio à guerra e aos homens que a lutaram.

Para eles, parecia que a incapacidade da América de derrotar o inimigo desorganizado do Vietnã do Norte sugeria um problema com a masculinidade americana. O feminismo e o liberalismo haviam tirado a virilidade de uma geração de homens. Então cabia aos evangélicos conservadores transformar meninos fortes em homens fortes que pudessem defender a "América cristã".

No livro, você também descreve o importante papel dos ataques de 11 de setembro, que permitiu aos americanos definir um novo inimigo para atacar: os muçulmanos. Você tem declarações preconceituosas e xenófobas de pastores como Pat Robertson e o filho de Billy Graham. Quando olhamos para o governo brasileiro e seus pastores, vemos a China ocupando esse lugar. A China é ao mesmo tempo um país de comunismo, "cristofobia" e Covid-19. Por que isso precisa, quase uma dependência, de ter um inimigo definido, em nível internacional?

O que descobri, principalmente por meio de minha análise da islamofobia pós-11 de setembro nos círculos evangélicos brancos, foi que a militância evangélica requer inimigos, sejam domésticos ou estrangeiros - idealmente, ambos. No livro, eu rastreio o caso de vários "ex-terroristas muçulmanos" fraudulentos que entraram no circuito evangélico no início dos anos 2000, dizendo, ou "testemunhando", aos evangélicos americanos como os muçulmanos queriam matá-los e destruir a América.

Descobriu-se que era tudo uma fraude, mas continuaram a ser promovidos por líderes e organizações evangélicas muito depois de terem sido revelados como fraudes. Isso me ajudou a revisar a narrativa padrão da militância evangélica. Em vez de abraçar a militância em resposta ao medo, pude perceber que, pelo menos por parte de muitos líderes, os evangélicos estavam alimentando temores nos corações de seus seguidores para consolidar seu próprio poder e justificar sua própria militância. Na verdade, eles vinham fazendo isso em suas próprias igrejas e organizações por décadas.

Como nacionalistas cristãos, uma ameaça externa representa uma ameaça à "América cristã" - e ao próprio cristianismo. Ao mesmo tempo, ameaças domésticas (feministas, liberais, humanistas seculares, etc.) também ameaçam a América cristã de dentro. Crueldade e até violência podem ser necessárias para proteger a fé e a nação. Mas os fins justificarão os meios.

O que você identifica como a principal razão pela qual evangélicos brancos têm tanta dificuldade em reconhecer a força do racismo sistêmico e o legado da escravidão / segregação na sociedade americana? Por que ver o Black Lives Matter como um inimigo?

Em primeiro lugar, a influência do evangelicalismo branco do sul no movimento evangélico mais amplo é profunda, então as atitudes racistas influenciaram diretamente o evangelicalismo contemporâneo. Mas a maioria dos evangélicos brancos também são nacionalistas cristãos que abraçaram o mito de que a América foi fundada como uma nação cristã. Para eles, as coisas começaram a dar errado na década de 1960. Para os negros americanos, é claro, esse mito das origens "cristãs" da América e da grandeza e bondade originais da América faz pouco sentido. E para os negros americanos, a década de 1960 foi quando as coisas começaram a melhorar. Portanto, há um conflito fundamental aqui.

Muitos evangélicos brancos também têm uma compreensão muito individualista do racismo. Eles podem não ter pensamentos racistas em relação a alguém de outra raça. Mas eles se recusam a ver o racismo histórico e sistêmico que continua prevalecente, um racismo estrutural do qual eles foram de fato cúmplices. Também vale a pena notar que pastores evangélicos conservadores, escritores, escolas cristãs e currículos de educação domiciliar promoveram explicitamente ideias de supremacia branca, incluindo o argumento de que a escravidão não era uma instituição terrível, que os ativistas dos direitos civis são marxistas disfarçados e que as relações raciais estão perfeitamente bem, a menos que os liberais agitem as coisas.

No Brasil existe um dilema que cerca a esquerda, que é: "Como falar com os evangélicos", já que eles podem ser decisivos para as eleições. Isso também é um dilema para a esquerda e os Democratas nos Estados Unidos? Como dialogar com evangélicos moderados, que não estão politicamente posicionados ou inclinados para a direita ultraconservadora?

Não tenho certeza se vejo um grande dilema, mas vejo um esforço concentrado para alcançar evangélicos moderados. Os Democratas estão trabalhando com ativistas religiosos progressistas e elaborando uma mensagem de campanha que faz uma distinção entre a decência de Biden e a corrupção e crueldade de Trump. Ao apelar para os moderados, eles podem construir em um terreno comum presumido - no amor ao próximo, na bondade, honestidade, integridade e valores morais básicos. Não há um grande esforço para envolver a forte base evangélica branca de Trump, porque seria inútil tentar fazer isso. Os Democratas estão tentando cortejar um pequeno número de evangélicos que podem se sentir em conflito sobre apoiar o presidente por mais quatro anos.

Seu livro está se tornando uma referência neste período pré-eleitoral. Que resultado Kristin Du Mez espera do livro "Jesus and John Wayne" no debate sobre as eleições americanas? O que você aconselha sobre o Brasil, para quem está preocupado com essa situação semelhante?

Quando comecei a escrever o livro, acho que é justo dizer que pensei que o livro poderia levar alguns cristãos a reconsiderar suas escolhas políticas. Quando terminei o livro, concluí que esses compromissos estavam tão profundamente enraizados que realmente não pensei que muitas mentes pudessem ser mudadas. Fiquei contente em oferecer uma narrativa explicativa, uma espécie de testemunho do que estava acontecendo e do que havia acontecido. Dito isso, desde a publicação do livro no início deste verão, fiquei animada ao ver quantos evangélicos brancos abraçaram o livro - pessoas que foram apanhadas por essa ideologia sem compreender totalmente suas repercussões.

Alguns pastores temiam perder empregos, líderes temiam ser removidos de posições de poder e os evangélicos membros comuns temiam perturbar amizades e relacionamentos familiares. O conselho que eu daria aos brasileiros, especificamente aos cristãos é: Neste momento histórico e político é importante para os cristãos, e para os próprios evangélicos, falar com ousadia, desafiar formulações de sua fé que demonizam os outros, que sustentam o autoritarismo, que deixam de trabalhar para o bem comum, que deixam de amar o próximo como a si mesmos. Se mais pessoas tiverem coragem de falar e agir, haverá força nos números.