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Ronilso Pacheco

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Gil, do BBB 21, pode ser gay e evangélico, e ele não estará sozinho

Gil teme como será recebido por integrantes da igreja após participação no BBB 21 - Reprodução/Globoplay
Gil teme como será recebido por integrantes da igreja após participação no BBB 21 Imagem: Reprodução/Globoplay

Colunista do UOL

02/05/2021 09h52

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Este artigo foi motivado pelas angústias tornadas públicas por Gilberto Nogueira, participante do BBB 21. Gil do Vigor, como ficou conhecido, tornou-se não apenas uma das figuras mais marcantes desta edição, como conseguiu levantar um dilema que flui silenciado e desconfortável para um grande número de pessoas evangélicas: escolher entre viver a sua sexualidade fora do padrão heteronormativo ou reprimi-la para permanecer na igreja.

Por diversas vezes, Gil, que foi seguidor da igreja mórmon, compartilhou sua dor por saber que ao se assumir gay para o país inteiro num programa com a audiência do BBB, ele não seria aceito de volta em sua igreja. Por vezes, disse que amava a igreja e gostaria apenas que ela o aceitasse com sua sexualidade, a "cachorrada".

Embora para muitos evangélicos, mórmons não sejam reconhecidos como cristãos, isso importa pouco aqui. Com relação à sexualidade, a postura é a mesma das igrejas evangélicas conservadoras e fundamentalistas: a homossexualidade é considerada como pecado e abominação aos olhos de Deus.

No entanto é importante saber que este "dogma" (a homossexualidade é pecado e abominação para Deus), há tempos tem sido questionado, e cada vez mais deixado de ser hegemônico e absoluto. Esta é uma boa nova não apenas para Gil do Vigor, mas para milhares, talvez milhões de pessoas, principalmente jovens que arrastam o fardo da culpa.

Muitos destes jovens, passaram por um doloroso processo de "reversão", conhecido como "cura gay", que submete a si mesmo a torturas físicas e psicológicas para reprimir um desejo que consideram impuro, sujo e pecaminoso. Embora sem os mesmos métodos, esta também é a lógica por trás dos diversos projetos de cura gay que já foram propostos no Congresso por parlamentares integrantes da bancada evangélica.

Essa interpretação da bíblia legitimou a destruição de famílias, com filhos e filhas rejeitadas por pais e mães que acreditam estar fazendo a difícil escolha de ser fiel a Deus ao expulsá-los de casa ou permitir que eles e elas se vão. Em muitos casos, adolescentes gays são agredidos, na compreensão de que a "surra" expulsará deles o "demônio da homossexualidade".

Acampamentos com o objetivo de reprimir a homossexualidade são feitos com métodos que vão do banho de água fria, a orações decoradas, passando pela automutilação e a terapia ocupacional para não "pensar em sexo".

Não são poucos os teólogos e teólogas e estudiosos competentes da Bíblia que, com amor e compromisso com a igreja, a partir de seu domínio inquestionável dos textos originais em hebraico e grego, estão seguros e muito bem fundamentados de que os textos usados para afirmar que a bíblia condena a homossexualidade são lidos de maneira equivocada.

Esta disputa em torno da interpretação bíblica passa longe dos olhos do senso comum, que acaba tendo a impressão, e a convicção, de que bíblia, igreja e diversidade sexual são inconciliáveis. As vozes conservadoras e fundamentalistas conseguiram impor de tal forma a interpretação de "aberração" e pecado que poucos conhecem o que tem sido feito, em outra direção: mais acolhedora, afirmativa e muito bem embasada biblicamente.

Em 2016, por exemplo, a IBP (Igreja Batista do Pinheiro), em Maceió, tomou a decisão em assembleia de que aceitaria a adesão de membros assumidamente LGBTI+ e que a estas pessoas seria dado o direito de serem batizadas, participarem da celebração da ceia e usufruírem de todas as prerrogativas de um membro heterossexual.

Por força desta decisão, a CBB (Convenção Batista Brasileira), que é a maior e mais influente organização que reúne as igrejas batistas no país, expulsou sumariamente a Igreja Batista do Pinheiro da convenção. Nas palavras do seu pastor presidente, Wellington Santos, foi um grande "retrocesso". Mas na prática é consideravelmente mais triste e chocante do que isso.

Contudo, a IBP não voltou atrás em sua decisão, e segue sendo uma igreja referencial e afirmativa. Gil, que é pernambucano, certamente se sentiria feliz e acolhido lá. Em 2019, a teóloga Odja Barros, um nome relevante dos estudos bíblicos feministas no país, e também pastora da IBP, organizou e lançou o livro "Vocação Para a Igualdade: Fé e Diversidade sexual na IBP", junto com o também pastor e teólogo Paulo Nascimento.

O livro é a narrativa e o olhar dos próprios membros da igreja e de sua liderança, oferecendo as razões bíblicas, teológicas e pastorais para tomarem a decisão que causou a indignação da conservadora CBB.

Em 2017, surgiu o movimento "Evangélicxs pela Diversidade". A fundação do grupo foi fruto de um encontro ocorrido no ano anterior, em Brasília, quando um grupo de pessoas LGBTI+ evangélicas, e também heterossexuais aliados, reuniram-se para conversar sobre "Bíblia, gênero e sexualidade".

É este movimento que, em junho de 2020, durante o mês do Orgulho LGBTI+, iniciou, junto com a Plataforma Intersecções, a campanha "Fé na Diversidade", que recolheu mais de 170 assinaturas de lideranças de igrejas e organizações evangélicas para publicar a carta aberta "Declaração em reconhecimento da dignidade e do amor de Deus às pessoas LGBTI+".

O primeiro item desta carta traz inclusive um pedido de perdão a esta comunidade pela "incompreensão e negação ao Evangelho de Cristo e silêncio diante do sofrimento causado pelo modo como as igrejas cristãs têm tratado o tema". Certamente se estende ao Gil, por todo seu sofrimento.

Todas as lideranças signatárias da carta estão comprometidas com a compreensão de que não há conflito entre as expressões diversas da sexualidade e a fé evangélica. E, ao que parece, este movimento e esta libertação não irá retroceder porque ela está garantida na nova geração de evangélicos LGBTI+.

Já são muitos os jovens, como o ativista Antonio Valente, que produz interessante conteúdo sobre o tema nas mídias sociais e se apresenta como "bicha evangélica, que fala sobre sexualidade, raça e fé".

Há alternativas, há espaços, há casa, acolhida e afirmação para quem está sofrendo sozinho. A "cachorrada" também pode significar libertação, felicidade e salvação.