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Faltou CPI da Covid acusar Bolsonaro por crime contra o 'direito à memória'
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Em janeiro, a operadora de caixa Lídia Nascimento Ribeiro teve dificuldades para enterrar a mãe, que morreu em Manaus em consequência de complicações causadas pela covid-19. Além de ter de lidar com a burocracia em meio à dor, ela precisou se preocupar com a falta de oxigênio para o pai, que estava internado.
Em março, a jornalista Súzan Benites, 31, viu toda a família morrer, vítima do coronavírus. Primeiro, ela perdeu a mãe. Em seguida, o único irmão e, por último, o pai. No seu desabafo, disse que "a única certeza que eu tenho é que fomos muito felizes juntos e seremos nós quatro para toda a eternidade".
Em maio, José Joarez de Almeida, 48, faleceu em Santa Catarina, vítima de covid-19. Ele foi a sexta pessoa da mesma família que morreu por complicações da doença em pouco mais de um mês. Antes dele, seus quatro irmãos e o pai haviam falecido.
Essas histórias não foram inseridas no relatório da CPI da Covid que investiga como o governo Bolsonaro lidou com a pandemia e sua mortandade no país.
Os crimes pelos quais Bolsonaro é acusado no relatório final da CPI já seriam o suficiente para confirmar sua responsabilidade. Mas, houvesse tal tipificação, outro crime seria fundamental destacar: contra o "direito à memória".
A vida é muito mais do que a luta pela vida, a busca da cura de doenças, a reabilitação, o drible na morte. A vida também se estabelece e se reconhece a partir da memória.
A pandemia fez com que muitas pessoas sentissem falta da liturgia, sem nem mesmo entender que liturgia tivesse a ver com o processo da despedida, do tempo da dor, do choro, do último beijo, o último abraço, o adeus.
A memória estrutura marcos sociais sobre o que não deve ser esquecido, sobre o que não se deve repetir ou o que foi fundamental acontecer e deve ser guardado. Pessoas têm direito à memória. Famílias têm direito à memória. Sem o ritual e a memória, a vida perdida vale menos, ou não vale nada.
O governo Bolsonaro zombou da memória, da liturgia e da dor. A frieza de um governante não se resume à sua linguagem violenta, a seu apego à violência e o desprezo pelos diferentes. A frieza também está em quanto ele esvazia de sentido e importância o que, para muitas pessoas, é a única coisa que consegue dar sentido e importância a suas vidas.
Para Bolsonaro, "todos nós vamos morrer um dia, não adiante fugir disso". Mas sua estupidez o tornou incapaz de entender que a pandemia não é apenas sobre morrer, é também sobre a impossibilidade de cumprir o ritual que marca a transição das pessoas que amamos desse mundo para a nossa memória.
O funeral, a despedida, os abraços, o toque, os cânticos, o fim com dignidade.
Sim, o governo Bolsonaro cometeu crime contra "o direito à memória". A negligência e o deboche frio do bolsonarismo roubou de milhões de brasileiros o direito de viver o luto, assimilar a morte, realizar seus rituais de despedida e ver os seus entrarem com dignidade na memória do país, serem respeitados e lembrados.
Em Israel, Bolsonaro fez questão de visitar o Memorial do Holocausto. Nos Estados Unidos, visitou o Memorial do 11 de Setembro. Esses locais de memória têm o papel de não deixar a dor e o impacto causado nas sociedades pelas vidas perdidas serem esquecidas. E essa memória tem de ser coletiva, não pertence apenas às famílias, mas ao país.
É vergonhoso que Bolsonaro reconheça isso em outros países, enquanto faz piada, debocha, zomba e difunde mentiras diante da realidade de mortes que se acumulam aos centenas de milhares em seu próprio país. Agiu sem respeito, sem sensibilidade, sem patriotismo verdadeiro e sem cuidado.
É criminoso que o chefe da nação tenha deixado mais de meio milhão de mortos em um vácuo de relevância, respeito e sentido. É criminoso que, enquanto as mortes se acumulavam, ele negava o luto e intensificava o escárnio e politização das vacinas.
Não vai estar no relatório. Mas estará para sempre na história e na memória do país.
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