Wálter Maierovitch

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Opinião

Bolsonaro, do conto do vigário ao estelionato via Pix

O ex-presidente Jair Bolsonaro e Kássio Nunes Marques, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mostraram aos brasileiros o quanto está vivo o velho golpe do conto do vigário.

Apesar da concorrência pelas fraudes aplicadas pela internet, celular, cartões de crédito, o conto do vigário sobrevive. Kássio sentiu. Bolsonaro o aplicou.

Por partes.

Esquecido de uma velha regra do direito civil, - àquele que paga mal acaba por pagar duas vezes -, o ministro Kássio comprou um automóvel roubado para presentear a esposa. Com a sua incúria, caiu no popularmente denominado conto do vigário

O estelionatário vendedor, pelo que se sabe, era ligado a uma quadrilha de ladrões de automóveis. Enganou Kássio com a maior facilidade, segundo contou o jornalista Luiz Vassalo, em matéria do Metrópoles.

Como sabe todo comum mortal, nesses casos de roubo, o veículo é devolvido ao proprietário original ou à seguradora pagadora do prêmio. Ainda conforme noticiado, Kássio ficou com o veículo, levantada a apreensão. Para isso, pagou duas vezes ou foi um sortudo que a seguradora, com pena, deu-lhe um presente.

O inverso aconteceu com o ex-presidente Bolsonaro. Ele não foi vítima de estelionato, como o ministro Kássio.

Ao contrário, Bolsonaro aplicou em correlegionários um conto do vigário, pois tirou deles dinheiro para pagar dívidas decorrentes de multas. Atenção: não pagou as multas, conforme informou o Estadão na sua edição dominical.

A pretexto de precisar de auxílio financeiro, Bolsonaro arquitetou a chamada "vaquinha" e iniciou arrecadação por meio de depósitos na sua conta corrente bancária. Até aí, nenhuma ilegalidade.

O ex-presidente, por meio de 769 mil transações, via Pix, constatadas pelo órgão oficial de inteligência financeira, conhecido por COAF, apropriou-se de R$17,1 milhões.

Como não pagou as multas e se apossou do dinheiro, a "vaquinha" transformou-se em estelionato por força da mentira.

Mentira usada para enganar, induzir em erro. Assim, Bolsonaro iludiu crédulos a fim de obter vantagem ilícita (não pagou as multas) em prejuízo alheio.

Volto ao ponto. Não teria havido crime algum se as multas, no montante aproximado de R$1 milhão, tivessem sido quitadas.

Só para lembrar, diz o Código Penal, no artigo 171, ser crime a obtenção, para si, de vantagem ilícita em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento. A esse tipo penal, o legislador dá o nome (nomen juris) de estelionato.

Bolsonaro mentiu ao propalar precisar de doações para pagar multas sofridas. Não pagou. A intenção sua era outra. E bem mais do que comer pastéis com eventual sobra.

Passou tempo razoável para pagar e o crime de estelionato está consumado.

Segundo pacífica jurisprudência dos nossos tribunais, a simples mentira, ainda que verbal, mas que leve a vítima a erro, pode configurar o crime de estelionato.

Por evidente, nenhum apoiador, nem o mais fanático, iria doar caso soubesse do posterior desvirtuamento da sua generosidade. Acabou enganado pois o arrecadado com a falsa vaquinha não restou depositado nos cofres públicos, mas no bolso de Bolsonaro.

O conto do vigário é coisa nossa e antiga. Nasceu no século XVIII na cidade mineira de Ouro Preto.

Dois vigários de paróquias próximas disputavam a posse de uma imagem de Maria. Um deles fez proposta enganosa, logo aceita pelo outro vigário, de boa fé e incauto.

Pela proposta, a imagem seria amarrada no lombo de um burro, posicionado numa praça. O burro seria solto e a paróquia por onde ele passasse em primeiro lugar ficaria com a imagem para o seu altar.

Descobriu-se, posteriormente, tratar-se de burro de propriedade do vigário da paróquia contemplada. E o animal estava condicionado a retornar ao estábulo da paróquia.

O pároco perdedor havia sido enganado. Montou-se um estratagema ilusório, pois o burro transitaria pela paróquia do pároco ganhador, com base no reflexo condicionado, uma descoberta científica do médico fisiologista russo Ivan Pavlov, ganhador do Nobel de Medicina de 1904.

Bolsonaro, no devido processo criminal legal, caso denunciado, terá dificuldade de se safar do tipo legal descrito no artigo 171 do Códifo Penal.

A propósito, um outro indício da sua má intenção. Com o dinheiro entrando em conta-corrente bancária, Bolsonaro buscou realizar, via judicial, alteração em penhora realizada em seus ativos líquidos. Ofertou, para substituição da penhora, um apartamento localizado em Brasília. Lógico, preferia embolsar as contribuições provenientes de operações de Pix. Ou melhor, um forte indicativo do desejo de embolsar dinheiro em contante.

Quando Roma era a capital do mundo, não havia a figura do estelionato, a "truffa" do posterior direito penal italiano. Mas, os pretores romanos consideravam criminosos os que atuavam com intenção ( dolus malus) de enganar, fraudar.

Num pano rápido. O estelionato consumou-se no momento em que Bolsonaro obteve o dinheiro advindo do prejuízo do apoiador enganado.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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