No Código Penal de Bolsonaro, crime impossível e atos preparatórios
Os operadores do direito, bacharéis, advogados e juristas, entraram em cena logo depois da Operação Tempus Veritatis, com foco nas imagens da patética reunião do ex-presidente Jair Bolsonaro com os seus ministros, generais de Exército e membros da nata bolsonarista golpista.
Para alguns poucos operadores, o caminho do crime — as etapas percorridas que os romanos chamavam "iter criminis" — não ultrapassou, no caso Bolsonaro e demais participantes, dos limites dos atos preparatórios. Essa tese, com unha e dentes, está sendo encampada pelos bolsonaristas. Já circula pelas redes sociais.
A referida tese dos atos preparatórios caiu e está a ser usada, para Bolsonaro e bolsonaristas, como tábua de salvação.
O ex-presidente, como reforço para convencer ter tudo ficado nas palavras, nos discursos improvisados, no seu inconformismo de falar apenas para as paredes, acaba de jogar ao mar o cabuloso general Augusto Heleno.
Heleno é aquele do "virar a mesa" e dos arapongas infiltrados nas hostes da oposição, a desvirtuar a competência legal dos oficiais da agência de inteligência.
No momento e no campo jurídico, Bolsonaro quer fazer crer que os seus discursos não passaram de meras intenções. E para se livrar de responsabilidade pela Abin paralela, sacrificou Augusto Heleno.
Atos preparatórios
Os atos preparatórios, no direito criminal, não são punidos. Não há crime. Os atos preparatórios representam um nada, um indiferente criminal.
Para a grande maioria dos operadores do direito constitucional-penal prevalece, a incluir este colaborador do UOL, o entendimento de ter havido início de execuções de tentados crimes de golpe de Estado e de abolição do nosso estado democrático. Opinam os referidos operadores pelas tipificações dos crimes irrogados contra Bolsonaro et caterva (comparsas).
Mas, e diante das divergências, o cidadão leigo fica a perguntar aos seus botões:
- Será que até no campo criminal as interpretações dos fatos estão sob influência da polarização entre Bolsonaro-Lula e obnubilam mentes?
Não é isso. São interpretações técnicas. E as expostas pela minoraria foram abraçadas pelos bolsonaristas.
Atenção. Divergências interpretativas são tão comuns no campo jurídico, em especial no penal-criminal, que elas já viraram até piada de salão. E os acadêmicos de direito, quando contada a piada em aula, racham de rir ao ouvir pela primeira vez.
A respeito, vale recordar a piada mais conhecida e a ressaltar divergência entre dois advogados, isto na interpretação da lei mosaica sobre a concupiscência à mulher alheia — ou melhor, quanto à regra do "não desejar a mulher do próximo".
Na divergência da piada, um dos intérpretes sustentava, no caso concreto que discutiam e divergiam, não estar o marido próximo. Não se tratava da mulher do próximo pois, de segunda a sexta, o esposo trabalhava e permanecia em outro estado distante.
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Quero receberO caminho do crime
Não há dúvida que crimes de lesa-pátria, antes contemplados na Lei de Segurança Nacional e agora no Código Penal, são graves.
Como se sabe, todos os crimes passam por uma fase de cogitação e Bolsonaro até exteriorizou inúmeras vezes a sua intenção golpista. Até nos discursos das cerimônias dos dois últimos 7 de Setembro do seu mandato presidencial.
Essa fase de cogitação, cognitiva, como já frisado, não é levada em conta no direito penal. O grande mestre do direito criminal europeu, o italiano Francesco Carrara, ensinou não ser legítimo "castigar o pensamento de alguém".
Por exemplo, cogitar comprar um revólver e munição para matar o desafeto não é crime. Idem ficar a falar que o Brasil precisaria de uma outra ditadura militar.
Agora, e com Bolsonaro, a situação é bem outra. Foi ultrapassada a fronteira dos atos preparatórios e se deu início a execução da empreitada criminosa golpista — de se apropriar do poder.
Para os que não vislumbram crimes por parte de Bolsonaro, e consideram a Operação Tempus Veritatis algo irrelevante, tudo não passou de cogitação. De atos preparatórios. Não é isso, friso novamente.
Como alertei na coluna de sábado de Carnaval, na boa investigação monta-se um mosaico criminal, pedra por pedra. Visão do todo.
O magistrado palermitano Giovanni Falcone, dinamitado pela máfia siciliana, montou, para desvendar essa organização criminosa transnacional, o que chamou de "quebra-cabeça".
Falcone avisou que, na montagem, todas as peças eram fundamentais para a visão global. No fundo, condenava a miopia que, com relação a Bolsonaro, impede a visão ampla do golpismo, a culminar no fracassado 8 de Janeiro.
Bolsonaro e os seus querem ficar na fórmula latina do "verba volant" — de as palavras voarem e se perderem por não provocar efeitos. Pura empulhação bolsonarista.
Os núcleos golpistas atuaram com sinergia, a incluir o núcleo jurídico de preparação de minutas referentes a estado de defesa, de sítio e garantia da lei e da ordem. Tudo foi posto em execução. Alguns exemplos: a convocação de embaixadores para ataques às urnas e ao processo eleitoral, a disponibilidade dos "kids pretos" do comando terrestre, as barracas na frente dos quartéis e a chegada de caravanas de executores das invasões planejadas.
Como dizia um famoso e brilhante promotor do Tribunal do Júri de São Paulo diante de forçadas interpretações defensivas sobre atos preparatórios, se " tudo ficar nos atos preparatórios, nada mais será crime".
Crime impossível
Ao tempo dos rábulas de porta de cadeia, chamava-se o crime impossível de quase crime. Um quase. No crime impossível, ocorre uma tentativa inidônea, inadequada. Trocando em miúdos, todas as condutas de Bolsonaro, segundo o seu interesse, eram de execução inidônea.
Muitos entendem que a não adesão das Forças Armadas, em especialmente do Exército brasileiro, tornaram o golpismo bolsonarista um crime impossível. Como se diz educadamente nos recintos judiciários, "data vênia" — com respeito, não dá para concordar.
Até a história do Brasil desmente isso. Na chamada Revolução de 30, que impediu a posse de Júlio Prestes e tirou Washington Luis do palácio, houve uma articulação social ampla, ações fundamentais da chamada Aliança Liberal e, como destacou Barbosa Lima Sobrinho, historiador e advogado, a morte de João Pessoa foi o que moveu o movimento revolucionário e a sociedade.
No golpe militar de 64, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade representou o pontapé inicial do golpismo.
Ora, achar que a tentativa de golpe de Estado depende sempre da adesão das Forças Armadas significa ignorar as ações ilícitas concretas, as pressões e até ameaças. Na verdade, significa uma leitura enviesada do Código Penal.
Quando se passa com rolo compressor, como aconteceu na tentativa comandada e a favor de Bolsonaro, soa contrário ao direito falar em existência apenas de atos preparatórios e crimes impossíveis.
No caso golpista de Bolsonaro, incogitável tratar-se de crime impossível. Houve tentativa punível pois os meios utilizados não eram ineficazes e o objetivo foi perseguido com condutas efetivas, com potencial apto a mudar a história republicana e democrática.
A propósito, o Código Penal define o crime impossível e a definição não aproveita Bolsonaro: "Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio, ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar o crime".
Uma última conclusão. Ao contrário do externado pelo respeitado jurista Ives Gandra Martins, na entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o 8 de Janeiro não foi apenas uma "baderna". Ou seja, um crime impossível pela ausência de apoio das Forças Armadas.
No mosaico criminal investigativo — e pela boca de testemunhos e farta prova — o 8 de Janeiro fez parte da execução de plano para empolgar e aumentar a pressão a fim de os comandantes militares aderirem ao golpe.
O 8 de Janeiro foi planejado e posto em execução.
Em resumo, existe, e nem há necessidade de se socorrer à teoria da "Autoria do Domínio do Fato", prova provada do efetivo e induvidoso início de execução de golpe de Estado e abolição do estado democrático. Além disso, integrantes dos comandos do Exército e da Marinha queriam o golpe.
Além da Abin paralela, Bolsonaro contava com o Comando de Operações Terrestres e os "kids pretos" dessa tropa especial, sob as ordens de um general golpista declarado e envolvido, do coturno ao capacete, no tentado golpe de Bolsonaro.
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