General Freire Gomes e o valor no processo criminal do seu testemunho
Como fartamente informado, o general Marco Antônio Freire Gomes, comandante do Exército durante a presidência de Jair Bolsonaro, testemunhou em inquérito policial federal aberto com a Operação Tempus Veritatis (Momento da Verdade).
O seu testemunho compromete o ex-presidente Bolsonaro e o seu grupo golpista. A prova testemunhal ganhou, entre os latinos, o qualificativo injurioso de "a prostituta das provas".
Bolsonaristas já usam o supracitado epíteto, "prostituta das provas", para tentar desqualificar o testemunho dado em inquérito policial pelo general Freire Gomes.
Na verdade, um puro desespero.
Tomando de empréstimo uma expressão italiana empregada em situações desesperadoras, Bolsonaro, diante de tantas e convincentes provas — e não só pelo testemunho de Freire Gomes, está, perante a Justiça brasileira, "infarinato e fritto" (empanado na farinha e frito), como um bife à milanesa.
O próprio Bolsonaro, na avenida Paulista, admitiu ter examinado minutas, numa referência às apreendidas, uma delas na residência do seu ex-ministro da Justiça.
Como ensinou o maior tratadista da lógica das provas em matéria criminal, o italiano Nicola Framarino dei Malatesta, nada pode ser valorado com precipitação. Vale a composição lógica, pois leva à verdade real e afasta a meramente formal.
Publicada em 1927, até hoje citada, a obra de Malatesta tem o título, numa tradução livre, de "A lógica das provas em matéria criminal". O testemunho em inquérito policial é plenamente válido para a formação do convencimento do juiz-julgador se confirmado em juízo e se estiver em conformidade com as demais provas.
Pode valer por si só, caso confirmado em juízo em face da posição privilegiada do general Freire Gomes no governo e como comandante de arma. No nosso processo penal vigora o princípio do livre convencimento racional do juiz.
Mais ainda, não vale a regra romana do "testis unos, testis nullus": o testemunho único é válido se prestado perante o juiz, no devido processo.
Quem obrou de verdade?
No desespero da verificação de a nau golpista estar a fazer água, o general Walter Braga Netto, metido a valentão e há pouco inelegível, chamou Freire Gomes de "cagão". Isso porque refutou o golpe de Estado e a abolição da nossa democracia.
Não ser golpista, na visão de Walter Braga Netto, significa ser cagão.
A injúria assacada por Braga Netto, pelo jeito um militar formado na estrebaria dos quartéis, não tem sentido. Freire Gomes recusou o golpe, foi legalista, honrou o juramento militar de obedecer a Constituição.
No inquérito teve papel honrado. Relatou sem receio de desagradar, mas no seu dever de dizer a verdade.
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Quero receberSuas anteriores vacilações, como admitir acampamentos, podem ser atribuídas à observância da hierarquia. No momento fulcral, soube Freire Gomes, sem violar a hierarquia, dizer não a uma ordem manifestamente ilegal e inconstitucional.
Com efeito, foi Braga Netto que, como Bolsonaro, quis obrar na nossa Constituição e evacuar no estado de Direito.
Testemunho
O referido general Freire Gomes foi ouvido na condição de "testemunha direta", ou seja, aquela com conhecimento direto sobre fatos criminosos em investigação. Ensinam os tratadistas sobre os meios de prova processual penal, ser a testemunha direta a que fala a respeito de fato presenciado e expõe por ciência própria.
De se acrescentar, testemunhas não se escolhem — são as que tomaram conhecimento e viveram o momento.
Toda testemunha tem a obrigação de dizer a verdade e não se omitir quanto a fatos do seu conhecimento e importantes à investigação de busca à verdade real.
Mosaico probatório contra Bolsonaro
Pelo vazado a respeito do testemunho de Freire Gomes, e analisado o revelado por ele diante do mosaico probatório já existente, o general, que não aderiu e resistiu como comandante do Exército ao golpismo proposto por Bolsonaro, confirmou a urdida trama golpista, já em execução.
O seu testemunho está em conformidade com o prestado pelo então comandante de Aeronáutica — outro a não aceitar a proposta de golpe em andamento.
Outro ponto importante: o testemunho de Freire Gomes valoriza o relato do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e colaborador da Justiça, com contrato sujeito à rescisão caso não confirmado o revelado.
Bolsonaro já quis tirar o corpo, ou melhor, afastar a sua responsabilidade. Falou ter recebido uma minuta e levado à análise.
Pura falácia e caradurismo.
Por tratar de fato inconstitucional, golpe de Estado, minuta deste tipo são levadas aos lixo e não às reuniões para deliberações. E nem deviam ser encaminhadas a comandantes militares.
Ao contrário do sustentado por Bolsonaro, o caminho do crime (iter criminis) foi todo percorrido.
No direito penal existe um importante divisor de águas e se presta a elucidar, de forma induvidosa, os atos preparatórios, sempre impuníveis, do início da execução do crime, punível pela legislação.
Quando o general Freire Gomes foi consultado até duas minutas de decretos golpistas estavam à disposição, elaboradas de modo a dar, depois de adequadas, verniz constitucional ao golpe.
Portanto, um plano golpista já estava em fase inicial de execução. Teve até reunião palaciana com ministros e convidados.
Quando da ditadura militar de 64, foi minutado e depois usado o chamado "ato institucional". Era o verniz jurídico do golpe.
Bolsonaro começou as cogitações delinquenciais em palanques por ocasião de duas comemorações da independência (7 de Setembro).
Os atos preparatórios criminais ocorreram com a afirmação da existência de um constitucional "Poder Moderador", superior aos Executivo, Legislativo e Judiciário.
Parêntese. Como sabe um acadêmico de Direito frequentador das aulas de Teoria Geral do Estado, o criador do chamado poder moderador, o franco-suíço Benjamin Constant de Rebecque, deixou claro só caber isso nas monarquias constitucionais. Fechado parêntese.
Com a derrota iminente, Bolsonaro precisava da força militar e de um instrumento a dar aparência de constitucionalidade, necessário a obter reconhecimento internacional.
Daí, as minutas a consignar a preparação de uma "sopa" com institutos, do estado de defesa ao de sítio, da garantia da lei e da ordem à prisão de Alexandre Moraes.
Na verdade, uma receita de sopa golpista, com os piores ingredientes, pois descabidos naquele momento nacional em curso.
Em outras palavras, das cogitações expostas em dois discursos de 7 de Setembro, da preparação com o inventado poder moderador, iniciou-se a execução criminal com as minutas e a tentativa de arregimentar as forças bélicas nacionais: apenas o comandante da Marinha anuiu com o golpismo.
Pano rápido. Todo o conteúdo do inquérito precisará ser confirmado no devido processo. Por enquanto, existe farta prova para o início da ação penal (denúncia) e, aos que têm olhos de ver, há prova provado para mandar Bolsonaro para a cadeia.
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