Vídeo que cita injeção letal distorce informação sobre aborto legal no país
Um vídeo que distorce informações sobre procedimentos de aborto legal previstos no Brasil afirma que uma injeção letal é aplicada na barriga da gestante e que, em seguida, o feto é retirado "aos pedaços". O uso da injeção trata-se de exceção, adotada em casos raros de gestação com mais de 22 semanas, segundo especialistas ouvidos pelo UOL. A retirada por partes do feto não acontece em casos de aborto.
O material foi publicado nas redes sociais da deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PL) que, na semana passada, exibiu as imagens em discurso na Alesc (Assembleia Legislativa de Santa Catarina). A fonte do vídeo é o site Abortion Procedures, mantido por uma organização que luta contra o aborto nos Estados Unidos.
Desde que o The Intercept Brasil noticiou que uma criança de 11 anos, vítima de estupro de vulnerável em Santa Catarina, foi impedida pela Justiça de realizar o procedimento, desinformações sobre aborto circulam nas redes sociais.
Em outra publicação, da página Brasil Sem Medo, uma imagem afirma que "injeção usada em bebê de SC é usada em corredor da morte". A substância mencionada na publicação seria o cloreto de potássio.
A informação é creditada ao defensor público federal Danilo de Almeida Martins, que atuou no caso da criança de Santa Catarina para impedir o procedimento. Após recomendação do MPF na semana passada, a criança conseguiu realizar o aborto legal.
Aborto legal
O aborto é permitido em três situações no Brasil:
em caso de estupro,
quando a gestação representa risco de vida à mãe e
em casos de fetos anencéfalos.
Os dois primeiros casos são garantidos pelo Código Penal, e o último, por determinação do STF.
A legislação brasileira não estabelece limite gestacional para realização do aborto. A OMS desaconselha leis ou regulamentos que estabeleçam esse limite.
Procedimentos
O aborto legal pode ser realizado de três formas, segundo as orientações da Norma Técnica do Ministério da Saúde "Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes", de 2012, ainda em vigor.
A mais comum e utilizada na maior parte dos casos é a medicamentosa, com uso do misoprostol, que tem comercialização permitida no Brasil apenas para uso hospitalar.
O medicamento estimula a contração uterina para expulsão do feto, explica o ginecologista Ricardo Tedesco, membro da Comissão de Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).
"O misoprostol imita um hormônio que a mulher naturalmente tem, que é a prostaglandina. Ela amolece o colo do útero, que é importante para ele poder dilatar, e ao mesmo tempo estimula a contração. Assim, o útero expulsa o embrião. Esse é o método menos invasivo", afirma Tedesco.
Além do medicamento, que também é usado para induzir partos, outros dois métodos podem ser utilizados a depender do período gestacional: a curetagem e a aspiração manual intrauterina, conhecida como Amiu. Ambos também são usados para esvaziamento uterino nos casos de aborto espontâneo.
"Às vezes, a contração não dá conta de expulsar o feto e a gente tem que utilizar outros procedimentos para fazer a limpeza do útero", diz o ginecologista. Nestes casos, são usadas a curetagem uterina, em que a superfície do útero é raspada, ou a aspiração manual intrauterina.
Ao contrário do que afirmam as publicações, o feto não é retirado "aos pedaços" e nenhuma "injeção letal usada no corredor da morte" é aplicada nesses três procedimentos.
"Levar o feto a óbito e tirar por pedaços não é o que acontece na prática", afirma Tedesco.
Cloreto de potássio
O cloreto de potássio é raramente utilizado na chamada "indução à assistolia fetal" para provocar abortos. O procedimento estava previsto e recomendado no guia "Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistema de saúde" da OMS, de 2012.
Este documento, no entanto, foi substituído por uma versão atualizada em março deste ano, que não cita o uso do cloreto de potássio e recomenda métodos medicamentosos, inclusive em gestações mais avançadas.
Segundo o ginecologista Jefferson Drezett, especialista que atua há 30 anos com procedimentos de aborto legal no Brasil, o método mais utilizado é induzir a expulsão do feto com o uso do misoprostol.
O uso de cloreto de potássio em abortos legais por meio de uma injeção na barriga da gestante trata-se de exceção. Drezett afirma que a substância é usada em serviços clandestinos e em raros casos de idades gestacionais mais avançadas.
"O uso do KCL (cloreto de potássio) existe. Antes de dar a medicação para a expulsão fetal, usa-se a injeção dessa substância. Mas, em geral, não é a maneira que a gente usa em abortos legais, porque a maioria não chega a essa idade gestacional acima de 22 semanas", afirma o especialista.
"O que não faz sentido nem técnico, nem moral é a questão de esquartejar o feto. Isso eu nunca vi na minha vida", acrescenta.
O uso de cloreto de potássio também não está descrito na Norma Técnica do Ministério da Saúde de 2012, que recomenda o aborto apenas até a 22ª semana de gestação. Drezett participou da elaboração desta norma. O documento, no entanto, não tem valor de lei e a legislação brasileira não estabelece limite gestacional para acesso ao aborto legal..
"Se me perguntassem sobre técnicas de aborto legal, eu não citaria o KCL. A maioria dos casos terão idades gestacionais abaixo disso e normalmente a gente não fica preso à excepcionalidade", diz o ginecologista.
O caso de Santa Catarina
O ginecologista Robinson Dias de Medeiros, presidente da Comissão de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), reforça que o uso de cloreto de potássio é bastante incomum.
"Casos de maior complexidade, como esse da menina de 11 anos, são corpos tão pequenos, que eles também têm risco se a gravidez progredir. São corpos imaturos, inapropriados do ponto de vista biológico, psicológico e de estrutura física mesmo, para gestar uma gravidez de 40 semanas", afirma o médico.
Em casos como esse, em que a gestação ultrapassa 22 semanas, o procedimento de indução à assistolia fetal pode ser adotado, mas é raro e altamente especializado.
"Para isso ser feito tem que ter o recurso de um profissional habilitado nessa área, um profissional da medicina fetal. Um obstetra por si só não tem como fazer essa indução da assistolia fetal. É um procedimento bastante incomum", diz Medeiros. Ele também reafirma que a maior parte dos casos de aborto legal são feitos por via medicamentosa com o uso do misoprostol e no primeiro trimestre da gestação.
Corredor da morte
A substância utilizada na injeção letal, mais comumente usada nos casos de presos condenados à morte nos Estados Unidos, é o cloreto de potássio.
O condenado recebe primeiro um sedativo. Em seguida, curare, uma espécie de veneno, que provoca paralisia do sistema muscular. Por fim, é aplicado o cloreto de potássio, que causa parada cardíaca e, consequentemente, a morte.
O uso do cloreto de potássio em abortos legais, portanto, é raro.
O vídeo exibido pela deputada estadual Ana Caroline Campagnolo já foi checado pela AFP em maio deste ano, quando viralizou nas redes sociais.
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