Análise: "mais saraus, menos presídios"; periferia de São Paulo faz novas reivindicações
Os jovens da periferia ganharam visibilidade nas metrópoles brasileiras em meados dos anos 1990. O estudo de Hermano Vianna, “O mundo funk carioca”**, foi o primeiro a chamar a atenção para um tipo de manifestação juvenil que se desenvolvia de maneira “invisível” aos olhos da academia e da mídia. As manifestações “visíveis” até então se limitavam aos jovens militantes dos movimentos estudantis, cujo embate contra o Estado Autoritário estava na ordem do dia. A maioria dos integrantes destes protestos era composta por universitários, brancos e pertencentes à classe média.
A partir dos anos 1990, a juventude negra e pobre da periferia passou a ser vista de maneira mais atenta. Os números da violência revelavam que os jovens estavam entre as principais vítimas***. Quem eram estes jovens? A maioria era formada por descendentes dos migrantes, nordestinos e mineiros que chegaram maciçamente nos anos 1970 às metrópoles do Sudeste e se fixaram nas grandes periferias. Os migrantes desenvolveram, à época, um tipo de manifestação centrada na reivindicação por direitos coletivos: saneamento básico, postos de saúde, legalização de terrenos clandestinos, ou seja, questões imediatas. Pouco se falava de temas atuais, racismo, violência, educação precária.
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Os descendentes dos migrantes, jovens que nasceram na periferia nos anos 1970 ou que chegaram infantes enfrentariam uma realidade diferente à dos pais na década de 1990. A cidade de São Paulo se desindustrializara celeremente, as possibilidades de os filhos dos migrantes encontrarem trabalho, mesmo manual, na construção civil ou na indústria metalúrgica, tornaram-se reduzidas. A sociedade se redefinia como uma sociedade do conhecimento e os saberes exigidos implicavam, agora, em um maior grau de escolarização. Os esforços empreendidos neste sentido pelo Estado foram, porém, insuficientes. A partir dos anos 1990 os jovens da periferia também começaram a enfrentar desafios no campo da violência urbana.
O fenômeno não era novo, mas assumiu feições dramáticas quando o segmento juvenil, em especial os jovens negros, se tornaram vítimas preferenciais de criminosos, “justiceiros”, traficantes, policiais. O contexto histórico mais uma vez auxilia na compreensão deste fenômeno. A cidade de São Paulo não apenas se desindustrializava, mas estava se tornando mais violenta e segregada. A elite e a classe média buscaram soluções para a “sensação de insegurança” fortificando os espaços privados. Abrigaram-se em condomínios fechados, monitorados por sistemas eletrônicos e seguranças armados****. A voga neoliberal na política e na economia pregava o retorno ao estado mínimo, o que significava na prática em sucateamento dos sistemas educacional e de saúde. Os números indicam que o acesso às escolas públicas foi sempre crescente, mas a qualidade ofertada era questionável.
Os jovens da periferia iniciam em meados de 1990 o diagnóstico da nova realidade. O grupo de rap Racionais MC’s lançou, neste momento um disco emblemático, intitulado “Holocausto Urbano”. Em 1997, repetiriam a dose com “Sobrevivendo no Inferno”. Pela primeira vez a sociedade começava a ouvir o protesto irado que vinha da periferia em forma de música e poesia. O recado fora dado em músicas célebres. “Pânico na Zona Sul”, por exemplo, colocava o dedo direto na ferida. Denunciava as atrocidades cometidas por policiais, grupos paramilitares e atacava a indiferença da sociedade mais ampla.
“Então quando o dia escurece só quem é de lá sabe o que acontece
Ao que parece prevalece a ignorância e nós estamos sós(...)
Justiceiros são chamados por eles mesmos, matam, humilham e dão tiros a esmo,
E a polícia não demonstra sequer vontade de resolver ou apurar a verdade
Pois simplesmente é conveniente, porque ajudariam se eles nos julgam delinquentes?”
A atitude expressa em discurso, ao final, sugeria uma postura que depois se firmaria em segundo momento, com o surgimento dos saraus literários, isto é, a postura de denúncia, mas também de pertença e autovalorização da condição de morador da periferia. Pergunta Ice Blue na parte discursiva da música:
“Ei, Brown, qual será a nossa atitude?”
Mano Brown: “A mudança estará em nossa consciência. Praticando nossos atos com consciência e a consequência será o fim do próprio medo. Porque quem gosta de nós somos nós mesmos”.
As temáticas da violência, segregação urbana e racismo, apareceriam na sequência nos discos de vinil “Raio X do Brasil” (1993) e no épico “Sobrevivendo no inferno” (1997). A atitude política de voltar-se para a periferia de maneira a protestar contra a segregação, o racismo e a violência teria prosseguimento na chamada “literatura periférica”, que começou a se consolidar no início deste século. A afirmação de uma “literatura urbana” de protesto, elaborada por jovens, beberia diretamente na fonte do hip-hop.
Os poetas que atualmente frequentam os saraus literários colocam em questão problemas que a geração dos pais não enfrentou diretamente, ou não ousou. A educação de qualidade, a produção de uma cultura autônoma, o combate à violência e ao racismo, Tudo isto continua sendo dito de maneira artística. Os limites entre arte e política não estão claros, mas a intenção é a mesma dos rappers, ou seja, não reproduzir ou resvalar para formas institucionalizadas de representação, vistas de maneira ambígua. A afirmação de uma fala direta dos becos e vielas, “antigamente quilombos hoje periferia”, ressoa de maneira revolucionária. A magia de um sarau literário radica neste misto de arte, lazer, diversão, política e pertencimento.
A conversa informal que mantive recentemente com Sergio Vaz, coordenador do Sarau da Cooperifa, foi elucidativa. A pertença à periferia explicitada na frase “da ponte pra cá é tudo nosso” é um ato de protesto, peculiar aos grupos segregados. A exclusão, a discriminação reforçam, no outro extremo, vínculos de solidariedade. A postura política nova não se serve das antigas e legitimadas instâncias de poder e contrapoder, partidos, sindicatos, movimentos sociais. Estas organizações não são negadas, mas não são parâmetros para a ação que combina arte, cultura e política.
O próprio Sérgio Vaz revelou que em diferentes momentos se nega a atender convites para falar exclusivamente de “temas políticos” aqueles que entram e saem da pauta cotidianamente. O desejo expresso é falar destes temas, mas mediados por arte de protesto, atitude iconoclasta, rebelde, ativa. De fato, os saraus trazem os temas cotidianos semanalmente, os protestos contra a redução da maioridade penal, as chacinas que se abateram sobre a Zona Sul no segundo semestre de 2012 foram pautados. O protesto vem sendo realizado diariamente nas “quebradas”, nos saraus literários, longe da mídia e dos holofotes. A mensagem está nas poesias, na música do Grupo de Rap Versão Popular (Kelly, Cocão, Preto Will) “Quem viu, viu”, e jamais esquece. “Ocupar a quebrada”, fazer da Cooperifa “um quilombo cultural” (Jairo Periafricania) tem sido o caminho oposto ao de uma política de Estado “que fecha escolas e constrói presídios”.
A reivindicação de acesso à educação, a valorização deste bem simbólico, que aparecia de maneira ambígua no rap “A Rua me Atraía mais que a Escola”, ou de maneira meditativa “talvez eu volte a estudar” (“Tô Ouvindo Alguém me Chamar”) ressurge no Sarau da Cooperifa por meio de aproximações com o saber escolar. A participação nas escolas e das escolas no sarau é expressa na presença de professores da rede oficial, integrados à gestão do evento-sarau e à prática literária. O saber que se deseja não se reduz, porém, ao nível escolarizado. A expressão “vamos valorizar o que é nosso” diz respeito às produções artísticas da periferia.
O abandono dos sistemas de apoio, saúde e educação, pelo Estado, o silêncio sobre as práticas de violência e racismo, são enfrentados por meio de ações concretas e expressões simbólicas na Cooperifa. O coro/grito dos presentes quando JB, MC do grupo de rap NSN é chamado, é exemplar: “O troco”! “O troco”! Afinal o que significa “o troco” nestes contextos? Diz o rapper: “o poder pagou, o troco tá aqui”, “em forma de poesia”. É simples, o Estado produziu miséria, opressão, violência, racismos, soou a hora do “troco”, da resposta. O recado está sendo dado. Não o vemos nos espaços centrais, midiáticos, entre estudantes universitários, mas nos guetos, penumbras, becos e vielas da periferia. Nestes locais a segregação social e o racismo estão sendo questionados cotidianamente. “O troco está sendo dado”, “quem viu, viu”. “Bem de perto eu vejo tudo” (Preto Will).
* José Carlos Gomes da Silva é professor do departamento de ciências sociais da Unifesp – Campus Guarulhos. As reflexões apresentadas apoiam-se em dados do projeto de pesquisa que ele está concluindo, "O Capão Redondo nas vozes dos adultos e jovens, produções culturais e segregação urbana na cidade de São Paulo (1975-2012)", que conta com o fomento da Fapesp
** VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.
*** ZALUAR, Alba. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro, Renavan/Editora da UERJ, 1994.
**** CALDEIRA, Teresa P. Cidade de muros. Crime segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34/ EDUSP, 2000.
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