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9 em cada 10 mortos pela polícia no Rio são negros ou pardos

Em abril, uma grupo de familiares de pessoas mortas pela polícia organizou um protesto em frente ao Ministério Público  - Tânia Rêgo/Agência Brasil
Em abril, uma grupo de familiares de pessoas mortas pela polícia organizou um protesto em frente ao Ministério Público Imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Paula Bianchi

Do UOL, no Rio

26/07/2017 04h00

Entre janeiro de 2016 e março de 2017, ao menos 1.227 pessoas foram mortas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro. Dados obtidos pelo UOL através da Lei de Acesso à Informação mostram que a cada dez mortos, nove são negros ou pardos.

Ao todo, nesse período, foram mortas 581 pessoas identificadas como pardas, 368 negros e 141 brancos. Não há informações sobre o perfil racial de 137 casos. Apenas quatro são mulheres.

Os números, compilados pelo ISP (Instituto de Segurança Pública) com base em boletins de ocorrência da Polícia Civil, também mostram um grande número de jovens mortos – dos 1.227 casos, metade tem até 29 anos e 108 pessoas tinham 18 anos ou menos.

Cerca de 22% dos casos ocorreram em “morros ou favelas”. O número de mortes em comunidades, no entanto, pode ser ainda mais alto, já que a maioria das ocorrências (817) descreve o local do fato apenas como “via pública”.

A maior parte das mortes ocorreu na cidade do Rio de Janeiro (619), na Baixada Fluminense e na região metropolitana, em especial nas cidades de Duque de Caxias e São Gonçalo, com 106 e 126 registros, respectivamente.

No caso da capital, as mortes se concentram nas zonas norte e oeste da cidade. Entre os bairros com mais ocorrências destacam-se Santa Cruz, Pavuna, Anchieta e Costa Barros.

Na zona sul, foram registradas 14 mortes, 1% do total de mortes em todo o Estado --nove em Copacabana, três em Botafogo, uma na Lagoa e uma no Leme. Destas, sete ocorrem em favelas da região.

A maior parte das mortes envolveram agentes do 41º BPM (Irajá), com 166 casos. Reportagem do UOL mostrou que, desde a sua criação, em 2011, o batalhão concentra o maior número de mortes cometidas por policiais em todo o Estado.

Segundo o Censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 47% da população do Estado fluminense se declarou branca; 12%, preta, e 39%, parda. Os demais 2% se definiram como amarelos, indígenas ou não responderam a essa questão do Censo.

Vídeo mostra PMs executando 2 homens caídos no chão no Rio

TV Folha

Mortes seguem perfil de assassinatos no Brasil

Ex-comandante da PM, o coronel da reserva Ibis Pereira da Silva diz que os números repetem o perfil das mortes violentas no Brasil no geral. De acordo com o Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) junto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgado em junho, de cada cem pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras.

O estudo mostra que homens, negros, jovens e com baixa escolaridade são as principais vítimas da violência no país.

Ibis critica a alta letalidade de polícia e diz que o grande número de mortes de negros e pardos tem relação com a forma de atuação dos agentes, que privilegia as ações em flagrante e na periferia. “Na cabeça das pessoas o grande inimigo público é o traficante e crime se combate empurrando a polícia para o enfrentamento", afirma.

"Assim a PM, que não investiga, já que isso fica a cargo da Polícia Civil, vai procurar mostrar serviço onde ela possa encontrar alguém e não precisar de um inquérito, de uma investigação. Onde ela possa atuar visualizando”, afirma. “E esses espaços acabam sendo a periferia, os espaços de pobreza. Ela não vai fazer isso na zona sul onde você pede droga pelo telefone, que você tem que ter um inquérito.”

Para a socióloga e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, Silvia Ramos, vinculado à Universidade Cândido Mendes, o grande número de mortes cometidas pela polícia, em especial na periferia, mostra um descontrole dos agentes, que acabam decidindo sozinhos que ações tomar, e uma concordância tácita do governo com a alta letalidade em áreas mais pobres e distantes do centro.

 “Há uma tradição de brutalidade, violência e ilegalidade desde que seja na favela. Isso não ocorre na zona sul, na Tijuca”, afirma a cientista social ao citar a diferença entre o número de mortes em batalhões da PM na zona sul e nas zonas norte e oeste do Rio.

 “Muitos comandantes pensam na atividade no Rio como uma guerra”, afirma Silvia. “O bandido atira na gente, a gente atira no bandido, e no meio pode ter uma menina de 13 anos [caso de Maria Eduarda, morta por bala perdida no pátio da escola em que estudava, na favela de Acari, zona norte do Rio]. Nem mesmo naquele caso o comandante da PM se pronunciou. O relações públicas da PM chamou de dano colateral: ‘Isso é uma guerra (...) O guerreiro é que sabe o que fazer na hora H'”.

O próprio comandante geral da Polícia Militar do Rio, Wolney Dias Ferreira, comparou a violência no Estado a uma guerra nesta terça (25), durante o sepultamento do sargento da PM Hudson Silva de Araújo, o 91º PM morto no Estado desde o começo do ano. "Os bandidos estão cada vez mais armados. O Rio hoje vive numa guerra."

Para Ibis, no entanto, os PMs deveriam ser os primeiros a se insurgir contra essa "lógica da guerra". “Quem diz que a perda de uma vida é efeito colateral acaba dizendo também sem dizer que não tem o menor compromisso com a vitimização de policiais, que no fundo é o que assistimos no Rio.” 

Brasil condenado pela OEA

Em maio, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não investigar e punir os responsáveis pelas chacinas de "Nova Brasília", no Complexo do Alemão, em 1994 e 1995. A sentença destacou a violência policial como uma violação de direitos humanos no Brasil, em especial no Rio.

A decisão da Corte estabelece medidas para reduzir a violência policial. Entre elas, determina que, em caso de morte, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial em que agentes do Estado sejam suspeitos, a investigação seja feita por um órgão independente.

Pesquisadora da ONG Justiça Global, Lena Azevedo chama atenção para o aumento do número de crianças e adolescentes mortos. "A morte de jovens negros segue um padrão histórico de letalidade policial no Rio de Janeiro. No entanto, nos últimos anos, têm crescido e muito o número de crianças mortas por policiais, em especial pelo crescimento de operações em horário escolar", diz. A organização enviou um informe às Nações Unidades, solicitando um posicionamento formal sobre as mortes.

Para a Human Rights Watch, que lançou no ano passado o relatório "O Bom Policial Tem Medo: Os Custos da Violência Policial no Rio de Janeiro", os números endossam "o entendimento das autoridades de que execuções extrajudiciais são bastante comuns" no Estado.

"O número de mortos por ação policial é muito maior do que o número de baixas na polícia, fazendo com que seja difícil acreditar que todas estas mortes ocorreram em situações em que a polícia estava sendo atacada", diz o relatório da Human Rights Watch.

A diretora da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, ressalta que a violência não atinge de forma igual toda a sociedade. “Racismo, pobreza e a região onde os homicídios ocorrem são componentes importantes que nos ajudam a entender o perfil das vítimas da polícia”, diz.

“Precisamos desconstruir a ideia de que há uma guerra e que o inimigo é o jovem, negro e morador das periferias. Em paralelo é necessário dar um basta à impunidade frente às violações cometidas pela polícia, já que isso alimenta o ciclo de violência.”

Treinamento para “aumentar a responsabilidade” 

UOL entrou em contato com a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, que não comentou o perfil dos mortos e afirmou, em nota, que os números são "sim, muitos altos", mas que a corporação vem "mês a mês perdendo recursos humanos e materiais" e está com a mobilidade e o serviço preventivo comprometidos, tendo como consequência um "maior enfrentamento".

Segundo a Secretaria, parte da tropa localizada nos batalhões com mais registros de confronto irá passar por um programa de qualificação a fim de “aumentar a responsabilidade em relação ao uso da força e de armas de fogo, bem como a atenção à saúde física e psicológica dos policiais militares”.

“O treinamento se baseia na metodologia do uso progressivo da força, se iniciando com instruções de abordagem segura usando de verbalização adequada, tomada decisão (que envolvem procedimentos para evitar ações por impulso), técnicas de tiro de defesa, dentre outras disciplinas que compõem o programa”, afirma a pasta.