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Poder de facções "estica" série de atentados e surpreende autoridades no CE

3.jan.2019 - Bombeiros apagam caminhão incendiado em onda de violência no Ceará - AFP PHOTO / O POVO / ALEX GOMES
3.jan.2019 - Bombeiros apagam caminhão incendiado em onda de violência no Ceará Imagem: AFP PHOTO / O POVO / ALEX GOMES

Carlo Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

22/01/2019 04h00

O reforço policial, a transferência de líderes de ataques e a prisão de 403 suspeitos até esta segunda-feira (21) não foram capazes de cessar a onda de atentados que aterroriza o Ceará desde o dia 2 com mais de 200 ocorrências já registradas entre incêndios e explosões a viadutos, torres de transmissão, veículos e prédios públicos e privados.

O UOL apurou que o poder prolongado de fogo das facções está causando surpresa às autoridades locais e federais. Especialistas ouvidos confirmam que a força dos grupos foi subestimada --o que faz com que a onda de violência se estenda por um período maior que o esperado, mesmo com o reforço de 700 policiais da Força Nacional, de outros estados e da reserva da PM (Polícia Militar) do Ceará em operações.

Segundo uma fonte do governo, a estimativa máxima inicial era que os ataques cederiam em até uma semana, especialmente após a chegada da Força Nacional. "Nenhuma outra série de ataques, nem aqui, nem no país, durou tanto tempo. Mesmo caindo em número, há surpresa da atuação prolongada", disse o investigador ouvido sob sigilo de identidade. Essa é quarta série de atentados que o estado enfrenta desde 2016.

O coordenador do LEV (Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará), sociólogo César Barreira, confirma que a percepção do poder das facções cresceu no estado com essa onda de atentados. "Elas estão muito fortes, e foi novidade essa questão. Fomos pegos um pouco de surpresa", afirma. "Houve uma provável aliança entre elas, que passaram a ter o estado como alvo. Por isso há uma continuidade de ações."

No Ceará, três facções dominam o tráfico de drogas e lutam por domínio de bairros e presídios: PCC (Primeiro Comando da Capital), CV (Comando Vermelho) e GDE (Guardiões do Estado). Além deles, há ainda presos faccionados à Família do Norte, mas em menor número e sem atuação mapeada fora dos presídios. Elas fizeram um acordo de paz para atacarem o estado, que anunciou medidas disciplinadoras em presídios.

Barreira diz que vê acertos do governo do estado no enfrentamento do poder paralelo dos grupos nas penitenciárias (que gerou os ataques) e em resposta à onda de ataque. "O estado, em princípio, montou um esquema que acho correto. O que ele fez em termos de pronunciamento, de não recuar, de manter essa divisão das facções dos presídios, foi correto", afirma. 

O conselheiro penitenciário do Estado do Ceará, o criminalista Cláudio Justa, admite que o poder das facções foi subestimado pelo estado. "Os espaços prisionais são muito estratégicos para as facções, elas não querem perdê-los. Infelizmente, o problema do poder das facções no estado era bem maior que o estimado pelas autoridades", afirma.

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Prisões de "baixa qualidade"

Cláudio Justa também aponta que, como o estado não cedeu, há uma resistência do crime organizado às medidas anunciadas pelo governo. Para ele, isso prolongou os ataques com o uso do poder de influência das facções em áreas dominadas por elas.

"Um aspecto é a capilaridade das facções no estado e o grande volume de jovens engajados --que são os principais executores dos atentados. Tivemos muitas prisões dos executores, dos operadores da ponta das facções, grande maioria menores de idade; mas não tivemos prisões qualitativas, no sentido de lideranças que atuam fora das penitenciárias", aponta. 

O excesso de prisões é uma preocupação do Conselho Estadual dos Direitos Humanos. "Temos muitos relatos de que a polícia aborda sem motivação muitas pessoas, e já conhecemos o perfil: jovens, negras e pobres de periferia. Quatrocentas pessoas presas é muita gente! Imaginamos que nem todos os presos têm praticado infrações criminosas. A gente se preocupa porque não são prisões qualificadas", afirma Beatriz Xavier, presidente do conselho.

Ela afirma que há problemas também em relação à série de transferência de presos do interior para Fortaleza, já que eles ficam longe das famílias e de seus defensores. "Eles perdem o contato familiar, a alimentação levada por eles e muitos ficarão sem contato com seus defensores", diz.

Procurada, a Secretaria da Administração Penitenciária informou que 84 cadeias já foram desativadas no interior este ano, com 2.500 presos movimentados. "A medida tem como objetivo reforçar a segurança de agentes, internos e da população que mora no entorno dos estabelecimentos prisionais, uma vez que todos eles estão localizados dentro das cidades e sem perímetro de segurança, com muralha, guaritas e guarda externa, trazendo riscos de fuga e tentativa de resgate, em razão da estrutura inadequada", informa a pasta. 

Além disso, as medidas mais duras anunciadas para presos nas cadeias são vistas com preocupação pelo conselho. "A gente teme que os efeitos positivos sejam bem inferiores aos negativos. Estamos em contato com entidades nacionais e produzindo informações para organismos internacionais", diz.

Para Ricardo Moura, pesquisador do Laboratório Conflitualidade e Violência, da UECE (Universidade Estadual do Ceará), um ponto que pesa a favor das facções é justamente a utilização de jovens que não seriam ligados aos grupos para os ataques. "Essas pessoas arregimentadas não necessariamente integravam a facção. Isso faz com que a capacidade de poder de ataque das facções seja ampliada, nem só quem tem vínculo realiza as ações", diz.

Moura ainda acredita que os ataques tendem a reduzir em número até que cessem em breve. "Chega um momento em que a capacidade que esses grupos têm de arregimentar, de atacar e de mobilizar vai diminuindo. Embora algumas das lideranças tenham sido transferidas, temos informações de que novas lideranças assumiram os postos", diz.

Pós-crise preocupa

Para o criminalista Cláudio Justa, uma preocupação do estado deve ser pensar como ficará o Ceará pós-crise. "Como o estado irá administrar, com meios próprios, uma criminalidade organizada que se mostrou de tão grande alcance? O fim dos ataques não irá significar, necessariamente, a retomada do controle pelo Estado da segurança pública", pontua.

"Do mesmo modo ocorre nas penitenciárias. Como o estado vai conseguir manter o padrão de controle sem a presença dos reforços federais de agentes penitenciários, sem novas unidades prisionais prontas? O pós-crise é algo muito preocupante. Podemos viver aqui o fenômeno do Rio: intermitência dos confrontos e dos ataques", conclui.

Sobre os presídios, o governo cearense informou que já deu posse a 440 novos agentes penitenciários que tomaram posse este ano.

O UOL procurou o Ministério da Justiça nesta segunda-feira, mas foi informado que a pasta não está comentando, nem indicando porta-voz par falar sobre a crise no Ceará. 

A reportagem também procurou a SSPDS (Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará), para que se pronunciasse sobre os 20 dias de ataques, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.