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Doria quer enfrentar PCC, mas Polícia Civil sofre sem estrutura e salário

Viatura descaracterizada da Polícia Civil atingida por marquise do 68º DP, que despencou - 16.abr.2019 - Rivaldo Gomes/Folhapress
Viatura descaracterizada da Polícia Civil atingida por marquise do 68º DP, que despencou
Imagem: 16.abr.2019 - Rivaldo Gomes/Folhapress

Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

13/11/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Polícia Civil, que investiga o PCC em SP, tem déficit de 15 mil agentes
  • Delegados, investigadores e escrivães têm o segundo pior salário do país
  • Com polícia fragilizada, Doria tenta angariar créditos por enfrentamento ao PCC

Com falta de quase 15 mil homens e mulheres no escopo da Polícia Civil, os agentes da corporação têm que trabalhar dobrado e conviver com delegacias, estrutura e salário sucateados. Enquanto isso, o governador usa a inteligência da corporação investigativa e divulgações de ações ostensivas da PM (Polícia Militar) para afirmar que está agindo contra a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).

Em abril deste ano, parte da marquise do 68º DP (Distrito Policial), no Lajeado, zona leste de São Paulo, despencou sobre duas viaturas, uma caracterizada, outra descaracterizada. Em novembro de 2017, o 91º DP, no Ceasa, zona oeste, teve de parar os trabalhos porque o local ficou inundado durante uma forte chuva. Não faltam relatos de delegacias sem estruturas mínimas, como até as que têm falta de papel higiênico.

Nessas condições, a Polícia Civil de São Paulo tem 27.207 funcionários. Um déficit de 14.705 profissionais. Com trabalho muitas vezes dobrado, recebem o segundo pior salário entre as unidades federativas do Brasil, segundo o sindicato dos delegados. A média salarial de um delegado paulista é de R$ 9.888,70. Um delegado de Mato Grosso recebe, em média, R$ 24.451,11. E a média de um investigador ou escrivão em São Paulo é de R$ 3.743,98. Já investigadores e escrivães do Amazonas recebem o triplo.

A assessoria de imprensa pessoal de João Doria afirmou que o governador não iria se manifestar sobre o assunto. Procurada, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) informou que o governo encaminhou à Assembleia Legislativa, no último dia 1º, um PL (Projeto de Lei) que prevê reajuste salarial para toda categoria, além de um conjunto de medidas de valorização.

"Somadas, as iniciativas têm um impacto de R$ 1,5 bilhão no orçamento do estado. Paralelamente, a atual gestão autorizou a contratação de mais de 20 mil policiais civis e militares, sendo 5.500 somente para a Polícia Civil. Destes, 2.750 já estão com os respectivos concursos em andamento. Os certames para as demais vagas já estão autorizados e deverão ter início no próximo ano. O governo do estado também investe na aquisição de mais de 8.000 coletes balísticos, armas, viaturas e equipamentos aplicados à inteligência para a Polícia Civil", pontuou a SSP, em nota.

Em junho deste ano, o governo estadual anunciou que iria reformar 120 delegacias de São Paulo, a um custo estimado em R$ 480 milhões.

No fim de outubro, Doria anunciou reajuste de 5% aos policiais, além de bônus, assistência jurídica, equiparação do auxílio-alimentação e adicional de insalubridade. O aumento, no entanto, frustrou a classe. "São vários os problemas enfrentados como o déficit de funcionários, salários baixos e por exemplo a falta de coletes balísticos aos policiais. São apenas 13 mil coletes dentro do prazo de validade para 28 mil policiais", disse Raquel Kobashi, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado.

"O valor anunciado está aquém das expectativas, 5% significa pagar a data-base, o reajuste constitucional que deveria ter sido pago em março e não foi. Não representa um aumento. O salário dos policiais civis de São Paulo conta com uma defasagem de quase 50% de reajuste e, somente depois desse acréscimo, seria possível falar em aumento salarial", disse a presidente do sindicato.

Ainda segundo a delegada, "a Polícia Civil é essencial no sistema de justiça criminal, que se inicia na perseguição do crime, bem como se garante o direito de todos aqueles que são lesados pela criminalidade. Se tais profissionais, que são altamente qualificados, não possuem remuneração adequada e à altura, o povo paulista é quem mais perde".

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Gustavo Mesquita, presidente da Associação dos Delegados de Polícia, complementou que o projeto de reforma da previdência é "extremamente vil e cruel com o funcionalismo público em geral, especialmente com relação à Polícia Civil".

Para ele, "como se não bastasse o pífio reajuste salarial, dano indícios de que quebrará a promessa de melhor salário do Brasil, exceto DF, o governador sugere uma reforma da previdência cruel contra os policiais". "Ele não dá valor à palavra empenhada", complementou.

De acordo com especialistas, o salário baixo influencia diretamente nas mortes de policiais, uma vez de 80% dessas baixas ocorrem quando os agentes estão em folga. Dessas mortes em folga, grande parte ocorre quando o policial está sozinho, armado, trabalhando em um bico não oficial, para complementar a renda.

Segundo Rafael Alcadipani, professor de gestão pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas), não existe combate ao crime organizado sem polícias estruturadas e bem remuneradas.

"Infelizmente, a gente vê que isso não está acontecendo. O governador fala uma coisa e espera que ela vire a realidade. A questão do combate ao PCC precisa de um aprimoramento muito mais forte da inteligência policial, uma integração maior das polícias e o governo não está cuidando disso. Muita fala e pouca ação", afirmou.

"Polícia de respeito" contra o PCC

Investigação da Polícia Civil serviu de base para que o MP (Ministério Público) denunciasse, através da Operação Echelon, em 2018, que o PCC está com atuação mais violenta e se expandindo. A facção já atua em todas as unidades federativas e tem negócios no exterior, em países como Bolívia, Paraguai, Colômbia, México e Itália.

Desde que assumiu o governo de São Paulo, João Doria (PSDB) tenta se valer de decisões judiciais que determinaram as transferências de chefes do PCC, do sistema penitenciário estadual para o sistema federal, como se fosse uma "produtividade policial" fruto de sua gestão. As medidas, no entanto, são resultado de investigações da polícia, do MP (Ministério Público) e de determinações da Justiça.

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O promotor Lincoln Gakiya, responsável pelo pedido da transferência da cúpula da facção e considerado o principal investigador do país contra a facção, afirmou que o pedido de remoção foi feito pelo MP e deferido pelo juiz da 5ª VEC (Vara de Execução Criminal) de São Paulo. Segundo ele, não houve ação dos governos federal e estadual na ação.

"O papel do governo federal foi apenas disponibilizar vagas através do Depen (Departamento Penitenciário Nacional) e de organizar a "logística da transferência. Apenas isso. O mesmo se diz do governo Doria, que também apenas auxiliou na logística. O que houve foi apenas cumprimento de ordem judicial. Não cabia a governos federal 'determinarem' ou 'negarem' as transferências", afirmou.

Em campanha publicitária veiculada na TV desde setembro e na divulgação das estatísticas criminais, a gestão Doria assume para si a transferência da cúpula do PCC, entre eles, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, e do segundo escalão da facção. Na propaganda, ao citar a polícia paulista como "de respeito", a gestão divulga a medida como ação direta do governo.

Campanha publicitária aponta transferências de líderes do PCC como produtividade da gestão Doria - Reprodução - Reprodução
Campanha publicitária aponta transferências de líderes do PCC como produtividade da gestão Doria
Imagem: Reprodução

De acordo com o governador, o PCC, atualmente, não é nem um décimo do que já foi. A afirmação, no entanto, contraria o que apontam longas investigações da inteligência da sua polícia. Segundo as apurações, avalizadas pelo MP, o PCC cresceu, desde 1993, quando foi fundado por oito presidiários, para aproximadamente 33 mil membros. A facção domina a exportação de drogas no Brasil para Europa, África e Ásia.

Segundo Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), "João Doria está fazendo isso em outras pautas da segurança também. No caso da Polícia Civil, tem a história do enfrentamento ao PCC, mas tem também a questão das delegacias da mulher 24 horas. São duas agendas prioritárias para São Paulo, mas qualquer ação que se pretenda sustentável precisa ser feita olhando para este profissional de segurança, o que não ocorre".

"A Polícia Civil sofre com baixos salários, falta de concursos e, quando os concursos acontecem, é difícil segurar os novos policiais na organização por muito tempo, pois muitos prestam outros concursos e acabam indo para o que paga mais. Se eu fosse o governador, teria muito cuidado com tudo o que ele está fazendo com a polícia, porque o que ele não precisa é da Polícia Civil em greve. E, se ele continuar pressionando por resultados sem cuidar da organização, ela vai acabar parando", diz a especialista.

Sem suporte, policial morre mais em suicídios

Em outubro de 2019, a Polícia Civil tinha 27.207 funcionários. Com déficit de 14.705 profissionais. Muitos desses policiais contratados têm que trabalhar dobrado. Esse é um dos motivos, segundo a Ouvidoria das Polícias, para o aumento do estresse do policial, que morre em São Paulo mais por suicídio do que por confronto.

Em 2017 e 2018, 17 policiais civis do estado tiraram a própria vida. Segundo a ouvidoria, trata-se de uma taxa média de 30,3 suicídios a cada 100 mil policiais, por ano —três vezes o índice aceitável pela OMS (Organização Mundial da Saúde), que considera situação de epidemia a partir de 10 suicídios a cada 100 mil. A taxa de suicídios é seis vezes maior do que a taxa dos mortos em serviço (5 a cada 100 mil).

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Apesar de o índice ser alto, a Polícia Civil não tem programa nem suporte para a saúde mental, segundo o ouvidor Benedito Mariano. "Precisa começar do zero na Polícia Civil. O sucateamento dialoga com o estresse do policial, porque tem que fazer o serviço de dois ou três. Existe uma negligência com relação à saúde mental dos policiais civis de São Paulo", disse.

Rogério Giannini, presidente do CFP (Conselho Federal de Psicologia), afirmou que o índice da Polícia Civil é "alarmante". "Se a gente olhar na sociedade como um todo, a gente diria que há um sintoma que mostra que algo não está indo bem. E a polícia faz parte desse sintoma", pontuou.

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Outro lado

Antes desta publicação, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) já havia se posicionado sobre as reclamações da Polícia Civil. 15 horas após a publicação, a pasta enviou novo posicionamento contestando pontos da reportagem. Veja abaixo:

"Diante dos novos pontos levantados pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública esclarece ainda que desde o início do ano, 46 unidades de polícia judiciária já foram reformadas. Outras 13 estão em obras e deverão ser entregues até o fim do primeiro trimestre de 2020. Além destas, está em curso um projeto para a reforma de unidades policiais em todo o estado, em parceria com a iniciativa privada. O respectivo chamamento público está em andamento, sendo que 17 unidades estão com os projetos executivos em elaboração.

Diferentemente do que afirma a reportagem em relação ao combate ao crime organizado, desde janeiro, mais de 80 operações foram deflagradas somente pela Polícia Civil para coibir delitos e prender integrantes de facções criminosas. Entre elas, a operação "Welfare", que em julho deste ano levou à prisão 35 integrantes de uma organização criminosa que utilizava o dinheiro do tráfico de drogas para cooptar novos membros; a operação "Sheik", realizada em setembro, que colocou atrás das grades 20 pessoas de uma organização envolvida com o tráfico de drogas, corrução e lavagem de dinheiro no interior do estado.

Ao contrário do que a matéria sugere, o suicídio de agentes policiais é uma questão global, inclusive foi tema de discussão durante o último encontro da Associação Internacional dos Chefes de Polícia (IACP), realizado em Chicago, em outubro. As polícias paulistas contam com sistemas de apoio e atendimento psicológico aos seus agentes. A Polícia Civil dispõe da Divisão de Prevenção e Apoio Assistencial, no Departamento de Administração e Planejamento (DAP), que conta com psicólogos e assistentes sociais, que ficam disponíveis para atender os policiais. Além da desta divisão, a Corregedoria e a Acadepol também oferecem atendimento psicológico aos agentes."