Chacina do Fallet: um ano após 15 mortes, caso caminha para impunidade
Resumo da notícia
- As investigações da Polícia Civil e da Polícia Militar sobre a chacina do Fallet terminaram sem responsabilizar ninguém pelas 15 mortes
- O inquérito da Polícia Civil apresenta uma série de falhas na realização de perícias, que comprometem a elucidação do caso
- O Ministério Público do Rio conduz investigação independente sobre o caso e vai avaliar o pedido de arquivamento feito pela Polícia Civil
Operação policial mais violenta da última década no Rio, a chacina do Fallet completa amanhã um ano sem que as instituições tenham dado qualquer sinalização de que os responsáveis serão punidos. A ação da PM nas comunidades de Santa Teresa, zona sul do Rio —que inclui também Fogueteiro e Morro dos Prazeres — deixou um saldo de 15 mortos.
Desde 6 de fevereiro, dois dias antes da operação policial, Santa Teresa convivia com tiroteios em razão de uma disputa entre facções rivais. Traficantes das comunidades Fallet e Fogueteiro, que integravam o CV (Comando Vermelho), tentavam tomar o Morro da Coroa, controlado pelos rivais do TCP (Terceiro Comando Puro).
Até o dia da chacina, havia indicativos de que o CV assumiria o controle da Coroa —única comunidade que não pertencia à facção em Santa Teresa.
A operação do Batalhão de Choque e do Bope (Batalhão de Operações Especiais) mudou o cenário. As 15 mortes —sobre as quais recaem sérias suspeitas— ocorreram em favelas dominadas pelo Comando Vermelho.
Nove dos 15 mortos foram baleados em uma casa na rua Eliseu Visconti, um dos acessos à comunidade do Fallet, por volta das 9h30. Essas mortes são investigadas em um mesmo inquérito.
O laudo de perícia de local encontrou 128 perfurações no imóvel. Na cena do crime, foram encontrados 198 cartuchos de fuzil e pistola deflagrados. Ao menos 40 disparos atingiram as vítimas.
Familiares e moradores da comunidade denunciaram à época que não houve confronto e os mortos —que estariam participando do conflito de facções— já tinham se rendido quando morreram.
Apesar disso, o caso caminha para a impunidade. A investigação da Polícia Civil ficou a cargo da Delegacia de Homicídios da Capital. Após uma série de falhas na elaboração de provas técnicas e direcionamento explícito no sentido de culpabilizar as vítimas, o delegado Marcus Drucker Brandão opinou em novembro pelo arquivamento do caso sem qualquer responsabilização dos policiais envolvidos mas mortes.
No inquérito de 28 volumes, em diversos momentos os investigadores se preocupam em tentar provar que os mortos eram traficantes —o que não afasta a possibilidade de terem sido mortos à margem da lei. São anexados documentos mostrando que cinco dos mortos possuíam anotações criminais. Também foram feitas buscas em redes sociais para tentar investigar possíveis atividades criminosas. Chegou-se a determinar que os policiais prestassem informações sobre o tráfico local.
"Ouçam-se os policiais sobre o Tráfico de Drogas naquela localidade, quem são seus líderes e se tem conhecimento de outras ocorrências em que os líderes participaram ativamente ou que façam referência a eles", solicitou Drucker em despacho.
O arquivamento precisa ser corroborado pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio). Os promotores do Gaesp (Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública) avaliam a investigação feita pela Polícia Civil e conduzem uma apuração própria sobre o caso.
A PM também já livrou os homens do Batalhão de Choque responsáveis pelas nove mortes. Em IPM (Inquérito Policial Militar), a corporação concluiu que nenhum dos policiais envolvidos cometeu qualquer "crime ou transgressão".
Investigação falha
Desde o primeiro momento, a condução do caso prejudicou as investigações. Os PMs do Batalhão de Choque removeram os nove corpos do local, alegando estarem prestando socorro às vítimas. Todos chegaram mortos ao Hospital Municipal Souza Aguiar.
A tese de que as vítimas estavam vivas é pouco verossímil diante do tipo de ferimento encontrado nos corpos e da forma que foram transportados para o pronto-socorro. Grande parte das vítimas recebeu dois ou mais tiros de fuzil no tronco, tendo lesões em zonas letais como coração, pulmões e fígado. Há ao menos um caso de evisceração —quando os órgãos internos de uma pessoa saltam para fora do abdômen.
Desfazer a cena do crime com o subterfúgio de um falso socorro é uma estratégia comum adotada por policiais para atrapalharem investigações de mortes em supostos confrontos.
A reprodução simulada e o exame de local foram muito prejudicados pelo desfazimento da cena. Você não sabe onde os corpos estavam, que mortos estavam com quais armamentos. Tudo isso foi prejudicado. Os corpos foram arrastados do terceiro andar da casa até o térreo e transportados na caçamba de uma viatura amassados
Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio
Apesar de todas as vítimas terem chegado mortas ao Souza Aguiar, os corpos deram entrada no hospital. Vídeos feitos por parentes das vítimas mostram que os PMs orientaram os profissionais de saúde. As roupas das vítimas —que poderiam revelar indícios de execução— foram jogadas no lixo, o que também prejudicou as investigações.
Questionada pelo UOL, a SMS (Secretaria Municipal de Saúde) não informou se abriu algum tipo de sindicância para apurar o ocorrido, mas disse que a direção do hospital colabora com as investigações e que o descarte das roupas é um procedimento comum. "Só são recolhidos pertences de valor ou roupas íntegras, que são devolvidos aos familiares", diz a secretaria em nota.
Novas falhas ocorreram no IML (Instituto Médico-Legal), onde peritos fizeram os laudos cadavéricos dos nove mortos. O principal ponto para descobrir se os policiais mataram em legítima defesa ou cometeram assassinatos é saber se houve de fato confronto no interior da casa. No entanto, não foram feitos exames para encontrar resíduos de pólvora nas mãos das vítimas. O procedimento seria capaz de indicar se elas haviam atirado.
Segundo o Sindperj (Sindicato dos Peritos Oficiais do Rio de Janeiro), que representa os legistas do IML, o estado não possui os equipamentos e insumos necessários para fazer esse tipo de análise. O sindicato apontou a falta de profissionais e de investimentos como causa dos problemas nos laudos da chacina do Fallet.
A pedido da ONG de direitos humanos Human Rights Watch, peritos internacionais fizeram dois relatórios analisando o trabalho do IML no caso. Os dois documentos apontam diversas falhas de procedimento. Os laudos não descrevem a trajetória dos disparos que atingiram os corpos e contam com pouquíssimas fotografias, o que prejudica uma nova análise dos ferimentos. Há ainda ferimentos encontrados não descritos nos exames, entre eles, a evisceração em um dos mortos.
Os peritos estrangeiros afirmam que os laudos mostram a "absoluta falta de qualidade" do trabalho no IML e não devem ser considerados como provas na Justiça.
"As autoridades do estado do Rio de Janeiro precisam interromper a prática de falsos socorros exigindo que, como regra geral, a polícia chame os serviços médicos para levar vítimas de tiroteios para hospitais, e punindo policiais que destruam propositalmente evidências da cena do crime", disse José Miguel Vivanco, diretor da Divisão das Américas na Human Rights Watch, em comunicado na última segunda-feira (3).
Por fim, a reprodução simulada —uma espécie de reconstituição do crime— só foi feita 81 dias após os fatos. "Aí o morador já tinha feito reforma na casa", lembra Lozoya.
Desde o início desta semana, o UOL busca um posicionamento da Polícia Civil a respeito das inconsistências apontadas pelos analistas internacionais sobre o trabalho dos peritos do IML e sobre as críticas feitas pelo Sindperj à estrutura e falta de pessoal na Polícia Técnico-Científica, mas a instituição não se manifestou.
Famílias cobram por justiça
Enquanto as investigações se arrastam sem nenhuma conclusão, as famílias das vítimas da chacina do Fallet cobram que haja justiça e enfrentam dificuldades para superar as mortes e sobreviver.
A reportagem do UOL conversou com parentes de quatro dos nove mortos na casa na entrada da comunidade. Os relatos mostram um cenário de falta de assistência, problemas de saúde mental e sofrimento.
Maria perdeu dois filhos, de 16 e 18 anos, na operação policial. Já Joana lida com a morte de um filho e de um sobrinho durante a ação. Ambas acompanham de perto o caso. Os nomes delas foram alterados para preservar suas identidades.
Ambas relatam terem enfrentado dificuldades em consequência da perda.
"Fiquei hipertensa, tenho transtorno de ansiedade e síndrome do pânico", diz Maria, que desenvolveu os problemas de saúde mental após as mortes. Até hoje não consegue falar dos filhos sem chorar copiosamente. Ela só conta com assistência psicológica porque uma terapeuta que trabalha no mesmo prédio que ela decidiu atendê-la de graça.
Aquela fase do ódio pelo que fizeram com os meus filhos passou. Eu só quero justiça. Se não por mim, para que outras mães não passem por isso [...] Preciso saber que a justiça existe e que ela não é cega como muita gente diz.
Joana, por sua vez, foi obrigada a fugir após receber ameaças de policiais e de traficantes do Morro da Coroa. Ela chegou a ser admitida no Provita (Programa de Proteção de Vítimas e Testemunhas), deixando o estado do Rio. Porém, acabou desistindo quando, meses depois do crime, o governo federal suspendeu os recursos para o custeio das famílias protegidas.
"Passei muita necessidade e resolvi sair", conta. Após o UOL mostrar que o programa podia deixar de funcionar no Rio, o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos voltou atrás e decidiu voltar a repassar os recursos para o Provita.
Ela também cobra um desfecho para o caso: "O Estado tem que dar uma resposta para a gente. Tem várias falhas [na investigação] e elas vão ser acobertadas", lamenta.
As duas mães contam que revivem a perda toda vez que veem notícias de crianças e adolescentes mortos por policiais no Rio. No ano passado, o estado teve um recorde histórico de mortes cometidas por policiais. Foram 1.810 mortos —crescimento de 18% em relação a 2018.
"Isso me dá muita revolta", conta Joana. "Ontem mesmo eu estava chorando com o caso do menino Arthur [criança de cinco anos baleada na cabeça durante operação da PM na zona norte do Rio]".
Maria diz que as outras filhas —de três e oito anos— mudam de canal quando uma notícia desse tipo é exibida na televisão. "Quando vejo outra mãe passar por isso, aquela dor não dói só nela. Dói em mim também", resume.
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