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Motim de PMs no Ceará estimulou grupos de extermínio e guerra entre facções

Em Fortaleza, bairros dominados pela facção GDE têm aviso: "abaixe o vidro do carro ou tire o capacete" - Luís Adorno/UOL
Em Fortaleza, bairros dominados pela facção GDE têm aviso: 'abaixe o vidro do carro ou tire o capacete' Imagem: Luís Adorno/UOL

Luís Adorno

Do UOL, em Fortaleza

06/03/2020 04h01

Resumo da notícia

  • Ceará viu pico de assassinatos durante período em que PMs cruzaram os braços
  • Cúpula da segurança pública vê três fatores por trás das mortes
  • Ladrões aproveitaram recuo no patrulhamento para agir
  • Facções tentaram ocupar espaço de rivais
  • E há indícios da ação de grupos de extermínio

Para a Polícia Civil do Ceará, criminosos aproveitaram a falta de policiamento ostensivo durante o motim dos PMs do estado, entre 18 de fevereiro a 1º de março, para aumentar os roubos.

Mas não foi só isso. Integrantes da cúpula da segurança pública e investigadores entrevistados pela reportagem acreditam que, durante o período, houve recrudescimento nas disputas de facções por território, acertos de contas e até ações de grupos de extermínio que incluiriam policiais da ativa e da reserva.

No período em que os PMs estavam amotinados em batalhões, os homicídios e latrocínios no estado triplicaram na comparação com o período anterior à paralisação. A paralisação se estendeu até o dia 1º, quando foi encerrada após assembleia.

Pelo menos 241 assassinatos foram registrados no estado durante o motim, número bem acima da média. O governador Camilo Santana (PT) afirma que a inteligência da segurança pública estadual avalia todas as hipóteses.

O procurador-geral de Justiça do Ceará, Manuel Pinheiro Freitas, afirmou que todos os crimes serão investigados pela Polícia Judiciária e, depois, os inquéritos serão analisados por promotores para propor à Justiça responsabilizações sobre os assassinatos do período.

Oficialmente, a Polícia Civil, responsável por identificar a motivação e os autores dos crimes, informa que tudo está em apuração e diz que todos os casos foram registrados em inquéritos policiais e seguem com as investigações.

A PM fala em cerca de 200 policiais de braços cruzados durante 13 dias, mas PMs dizem que houve colegas que apoiaram de forma branda, sem se amotinar, mas também sem trabalhar efetivamente.

Guerra de facções

CV em Fortaleza - Luís Adorno/UOL - Luís Adorno/UOL
Pichação demarca território dominado pelo Comando Vermelho em Fortaleza
Imagem: Luís Adorno/UOL

Três homens negros e franzinos rendidos e deitados de costas no chão. Um quarto homem grava a cena com um celular na mão esquerda, segura uma arma na direita e pergunta: "É GDE [facção Guardiões do Estado], ô, safado, é?" O rapaz rendido responde: "Cê é doido, é?" Na sequência, é baleado oito vezes na cabeça. Outras duas vezes nas costas.

O homem com o revólver em mão vai gravando até o segundo rapaz e atira três vezes no rosto. Depois, caminha até o terceiro, aponta a arma e diz: "Inocente! Inocente escapou. Só escapam os inocentes. Safado não escapa".

A Polícia Civil do Ceará estima que as imagens tenham sido sido feitas no interior do estado no domingo (1º), último dia de motim dos PMs cearenses.

A suspeita é que os dois jovens assassinados de fato pertenciam à GDE, facção criminosa local que tem parceria com o grupo paulista PCC (Primeiro Comando da Capital).

Pichação contra o PCC - Luís Adorno/UOL - Luís Adorno/UOL
Pichação contra o PCC em muro de escola de Fortaleza
Imagem: Luís Adorno/UOL

Os assassinos seriam integrantes do CV (Comando Vermelho), que tem pequena colaboração no estado, em locais específicos, da FDN (Família do Norte).

Segundo investigações locais, o CV tinha grande força no Ceará no passado. Mas o PCC, tentando se manter como a maior organização criminosa do Brasil, se aliou aos cearenses do GDE, fornecendo drogas e armas.

Hoje, a força do CV diminuiu, mas não acabou no estado, que vive sob uma disputa de facções.

A cada bairro periférico de Fortaleza, é possível saber de quem é o domínio pelas paredes. Em locais dominados pelo GDE, além das letras, estão pichados avisos claros: ao entrar, baixe os vidros do carro ou tire o capacete. "Ou então vai levar bala". Em alguns locais, marcados pela ação de grupos de extermínio, há mensagens elogiando a PM.

No meio do fogo cruzado, inocentes

Nas ruas de Fortaleza, cearenses dizem que a maioria dos assassinados durante o motim era de criminosos, vítimas de acertos de contas entre facções.

Mas há casos que apontam para inocentes mortos em meio ao fogo cruzado do crime organizado.

É o caso da dona de casa Maria de Paula Miguel, 26, que dirigia de volta do treino de futebol do filho de 7 anos em Fortaleza na noite de 19 de fevereiro, quando foi anunciado assalto. No banco traseiro do carro, estava também sua filha de 5 anos. No banco do passageiro, a avó das crianças.

Após tentar arrancar com o carro e fugir, Maria foi atingida no peito. Socorrida ao Hospital Geral da capital cearense, não resistiu aos ferimentos.

Maria Paula Miguel: morta durante assalto durante motim de PMs no Ceará - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maria de Paula Miguel: morta durante assalto durante motim de PMs no Ceará
Imagem: Arquivo pessoal

Há também o caso de John Lennon de Oliveira Araújo, 29, que trabalhava em uma padaria depois de ter sido socioeducador. Ele foi assassinado com pelo menos oito tiros na noite de 29 de fevereiro ao deixar o filho na casa de familiares.

O DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa) investiga o caso. John Lennon não tinha antecedentes criminais.

Ouça também o podcast Ficha Criminal, com as histórias dos criminosos que marcaram época no Brasil. Este e outros podcasts do UOL estão disponíveis em uol.com.br/podcasts, no Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e outras plataformas de áudio.