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"Medo de morrer no Brasil": colombianos acampam há 56 dias em aeroporto

Levis está a 55 dias no aeroporto de Guarulhos tentando voltar para Colômbia - Felipe Pereira
Levis está a 55 dias no aeroporto de Guarulhos tentando voltar para Colômbia Imagem: Felipe Pereira

Felipe Pereira

Do UOL, em São Paulo

24/06/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Um grupo de 30 colombianos está acampado no aeroporto internacional de Guarulhos por não conseguir voltar para seu país
  • Quase não há voos entre os dois países por causa da pandemia e, quando eles são marcados, falta dinheiro para bancar as passagens
  • Os colombianos sobrevivem graças a doação de igrejas e empresas e montaram um esquema para cozinhar, lavar roupa e tomar banho
  • Chegou a haver 500 colombianos no aeroporto e estes são os últimos porque o aeroporto não aceitará mais pessoas para evitar aglomerações

Se é verdade que a dificuldade amadurece, Levis Montoya está com uns 200 anos. Ela mora há 56 dias no aeroporto internacional de Guarulhos (SP). Faz parte do grupo de 30 colombianos que vive de improviso num acampamento entre o posto da PM e a agência do Santander do Terminal 2.

Levis tem 43 anos e já passou perrengue na vida. Agricultora, casou-se no povoado em que nasceu, mas ficou viúva cedo. Confrontos de quadrilhas fizeram miséria entre os camponeses. Assustada, ela fugiu para Cartagena e se arranjou no setor de turismo.

Na hora em que as duas filhas chegaram à faculdade, faltou dinheiro. Levis mudou para o Rio de Janeiro. Oferecia as mãos habilidosas para tranças e massagens a turistas com nada para fazer além de relaxar. Deu certo por dois anos, mas a covid-19 esvaziou as praias e a conta bancária de Levis.

Hoje, ela dorme em um colchão de ar doado pela igreja. Esta é a mesma origem dos itens de higiene e alimentos que mantém Levis e mais 29 colombianos. O local por onde o coronavírus entrou no Brasil virou prisão para o grupo.

Eles não têm nada a ver com brasileiros ilhados em cruzeiros ou apanhados pela covid-19 turistando pelo mundo. É gente que morava no país porque os salários eram maiores. Muitos são ilegais. Todos estão com as finanças em frangalhos.

Wilmer Barrios, 47 anos, visitou Salvador no final do ano passado e foi ficando. Quando percebeu, já tinha um bico consertando ar-condicionado de carros e uma simpatia muito grande pelo Flamengo. O dinheiro empatava com o que ganhava na Colômbia, mas o Pelourinho era lindo e a vida mais divertida.

Até a covid-19 enfiar as pessoas em casa. "Não aparecia mais trabalho, eu não tinha mais dinheiro para o aluguel e o dinheiro para comida estava acabando. Vim para São Paulo porque seria mais fácil um voo humanitário saindo daqui", conta.

Wilmer - Felipe Pereira - Felipe Pereira
Wilmer foi passar férias em Salvador e acabou virando morador da cidade
Imagem: Felipe Pereira

Ajuda de igrejas e empresas

De uma hora para outra, a covid-19 colocou centenas de colombianos — chegou a haver 500 deles — sem dinheiro num aeroporto às moscas. A ajuda chegava, mas nem sempre na velocidade desejada. Wilmer dormiu uma semana num colchonete fino como um celular até ganhar um colchão de ar.

É difícil ouvir elogios a colchões de ar, mas o colombiano consegue ser exceção. Ele não liga para a dor nas costas e prefere ver o colchão como materialização de solidariedade. Agradece a igrejas e empresas por ter onde dormir e o que comer.

Os colombianos recebem quentinhas e alimentos. O grupo de pessoas que se reuniu para ajudar os colombianos arranjou um terreno com fogão a 20 minutos de caminhada do acampamento improvisado. Existe um revezamento para preparar a comida. Muitos aproveitam esta ocasião para lavar roupas que serão secas ao sol.

Do contrário, lavam no mesmo lugar em que tomam banho, o banheiro de deficientes físicos. O lugar onde espalharam seus colchões fica numa parte cheia de cadeira para passageiros. As poltronas fazem a vez de armário e varal.

Jesus Adolfo - Felipe Pereira - Felipe Pereira
Jesus Adolfo lê a Bíblia todas as noites e pedem para voltar à Colômbia
Imagem: Felipe Pereira

Um inconveniente relatado pelos colombianos é a lâmpada acesa 24 horas por dia. Eles estão num estado de carência que falta até escuridão. Jesus Adolfo Cabrera, 22 anos, conta que não dorme direito há 38 dias, tempo que está no aeroporto. Ele vendia bugigangas para celular na saída do metro Pavuna, no Rio de Janeiro.

Sem clientes, nem dinheiro, pegou um ônibus para São Paulo. Viagem dolorosa, suspira. Sacolejou 8 horas com pensamentos sinistros. "Estava com medo de morrer no Brasil. Pensava que ia morrer de covid e ainda morreria longe de casa. Se é para morrer, que seja em casa."

O emprego de vendedor deu a Jesus Adolfo um português melhor. Nem por isso, ele se aventura pelas ruas. Uma das regras do acampamento é evitar perambulações. Estão de quarentena. Saem quando chega a vez de cozinhar e para ir à igreja duas vezes por semana. Isolamento social digno de elogio de pessoas que estão amontoadas entre bancos de aeroporto.

Há exigências também de manter a ordem no acampamento e não se vê lixo ou coisas fora de lugar. O espaço é limpo pelos próprios colombianos. Coisa fora do lugar, somente o cabelo de Jesus Adolfo.

Cansado de parecer um náufrago, ele resolveu arriscar ligar a máquina de 110 volts na voltagem 220 volts. Faltava raspar só o tampo da cabeça, quando apareceu cheiro de queimado. Isto faz algumas semanas e o buraco em um dos lados do cabelo está quase fechado.

Nelson e a cachorra Chiquita estão presos no Brasil e proibidos de ficar no aeroporto - Felipe Pereira - Felipe Pereira
Nelson e a cachorra Chiquita estão presos no Brasil e proibidos de ficar no aeroporto
Imagem: Felipe Pereira

Aeroporto não abrigará novos passageiros

Jesus Adolfo apostou em um voo humanitário do governo colombiano. Se os acampados são todo agradecimento aos brasileiros, ralham ao falar do governo de seu país. Dizem que raramente há voos e, quando há, custam caro.

A Embaixada da Colômbia informou, por nota, que organizou três voos e existe outro programado para o próximo domingo. As viagens são em caráter comercial, mas existe tentativa de fazer os acampados embarcarem.

Sobre o local em que estão, a Embaixada acrescenta que foi oferecida remoção para um albergue da prefeitura. A opção não agradou aos colombianos, mas, a partir de agora não haverá mais alternativa.

Nelson Gustavo Nestes, 49 anos, foi dono de jornal independente para defender a causa indígena na Colômbia. Começou a viajar pela América do Sul e fincou pé no Equador, onde adotou uma cachorra chamada Chiquita.

Ele viu o caos que se tornou a Europa por causa da covid-19 quando passeava pelo Uruguai. Resolveu voltar para a Colômbia. Pegou Chiquita e se meteu em um ônibus atrás do outro. Atravessaram Argentina, Paraguai e foram alcançados pela pandemia em Campo Grande (MS).

Os dois chegaram hoje ao aeroporto. Foram recusados. A administração informou que foi orientada a não receber mais gente para evitar aglomerações. A solução desejada, voltar para Colômbia, não é uma opção para Nelson e nenhum dos outros.

Seja no aeroporto ou em um albergue, alguns colombianos estão há tanto tempo tentando voltar para casa que já vislumbram ainda estar no Brasil quando a pandemia acabar. Levis disse que se isto acontecer, volta para o Rio para cumprir a missão de pagar os estudos das filhas.