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Criticado pela ONU, presidente da Fundação Palmares coleciona retrocessos

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo - Pedro Ladeira/Folhapress
O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Beatriz Mazzei

Colaboração para o UOL

10/04/2021 04h00

Nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em novembro de 2019 para presidir a Fundação Cultural Palmares (FCP), Sérgio Camargo foi considerado pela ONU "inapto" para ocupar o cargo. Em carta ao governo brasileiro, relatores da organização questionaram a condução do órgão em uma ação sem precedentes.

Consultados pelo UOL, observadores de políticas públicas apontaram outros retrocessos do executivo à frente do órgão, como a redução da demarcação de terras quilombolas, a omissão na vacinação desses grupos contra a covid-19 e a instauração de um clima de instabilidade que já provocou uma debandada de funcionários e até a abertura de ações por assédio moral.

Crítica da ONU

Revelado pela coluna do Jamil Chade no UOL, o documento da ONU centraliza as críticas a Camargo em duas ações: as declarações racistas feitas por ele e as mudanças estruturais promovidas em março de 2020, que eliminaram sete colegiados de interlocução da fundação com a sociedade.

Autores da carta, Tendayi Achiume, Dominique Day e Irene Khan, relatores da pasta de liberdade de expressão e Descendência Africana da ONU, avaliam que a alteração centraliza o poder e limita a participação de atores relevantes. Com a decisão, comunidades quilombolas perderam o acesso às decisões políticas da fundação.

Em resposta, o governo brasileiro afirmou que a nomeação é de "confiança", e que a expressão de suas opiniões políticas é importante para a "maturidade da democracia'". Sobre a carta, Camargo afirmou em sua rede social: "Parece que os relatores da ONU não toleram um negro livre, somente os que aceitam sua coleira".

Queda no reconhecimento de quilombos

A FCP foi criada em 1988 para preservar valores culturais, sociais e econômicos da influência negra na formação da sociedade brasileira. Desde 2003, ela tem papel crucial na demarcação de terras quilombolas: o de emitir uma certidão que reconhece as comunidades. Esse é o primeiro passo do longo processo burocrático que pode culminar com a destinação de terras para descendentes de escravizados, sobretudo em áreas rurais.

Durante o início do governo Bolsonaro, o esforço pelas demarcações caiu significativamente. Em 2019, foram emitidas 70 documentações. Em 2020, ano que contou com Camargo integralmente à frente da Fundação, os números caíram para 29.

Até agora, em 2021, foram emitidas apenas seis certificações. Antes de 2019, a média era de 180 emissões por ano. Há mais de 3 mil quilombos espalhados por todo o Brasil de acordo com a própria fundação.

Segundo Bia Nunes, vice-presidente ACQUILERJ (Associação de Comunidades Quilombolas do Rio de Janeiro), a falta de certificações é um descaso e um sinal da negação por parte de Camargo da existência dessas comunidades. Segundo a representante, as poucas certificações de 2019 e 2020 só ocorreram após forte pressão da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos).

A declaração da fundação é importante não só para a demarcação de terras, mas também para a comunidade obter direitos previstos em lei, como políticas públicas de saúde. Durante a pandemia, isso ficou mais acentuado. Os quilombolas chegaram a ser retirados do Plano Nacional de Vacinação, mas retornaram após intervenção de organizações sociais.

Isso não quer dizer que a vacinação tem ocorrido sem sobressaltos. Em Magé, na Baixada Fluminense, cerca de 120 pessoas de comunidades quilombolas foram vacinadas nesta segunda-feira (5). A Fundação Palmares e o Governo Federal não participaram das articulações.

Não está sendo fácil. Desde o começo da pandemia, houve um trabalho árduo para garantir o básico para essa população. Nós seguimos procurando parceiros que nos ajudem a construir dignidade para o povo quilombola."
Bia Nunes, vice-presidente ACQUILERJ

Antes de ser eleito presidente, Bolsonaro fez declarações polêmicas sobre a comunidade: "Fui em um quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$1 bilhão por ano é gasto com eles", disse em 2017. Pela fala, ele chegou a ser processado por racismo, mas foi absolvido. Camargo também fez alegações preconceituosas sobre a cultura e religião afro-brasileira e quilombola.

Questionada sobre a queda de certificações das comunidades quilombolas nos últimos meses, a Fundação Palmares não retornou até o fechamento da reportagem. Se enviado um posicionamento, ele será publicado.

Negação ao racismo

A presença de Camargo na fundação foi contestada antes mesmo de sua posse. Após declarações em que negava a existência do racismo no Brasil, Camargo chegou a ter a nomeação para o órgão suspensa pela Justiça em outubro de 2019. Na ocasião, a justiça, depois revertida, acatou a ação popular do advogado Hélio de Sousa Costa. Em fevereiro de 2020, o Superior Tribunal de Justiça anulou a decisão da corte. Em agosto daquele ano, um pedido da Defensoria Pública da União também foi negado.

Autodefinido "antivimista" e "inimigo do politicamente correto", Camargo ganhou notoriedade por repudiar pessoas negras reconhecidas na história brasileira, como Zumbi dos Palmares, a quem chama de "falso herói".

Dentro da fundação, chegou a excluir mais de 20 nomes da lista de Personalidades Negras da Fundação Palmares, criada em 2011 para cultivar a memória de lideranças do Brasil e do mundo. Entre os excluídos, há nomes como Leci Brandão, Milton Nascimento, Conceição Evaristo, Elza Soares, Sueli Carneiro, entre outros.

Instabilidade entre servidores

Além de embates com organizações e a Justiça, Camargo gerou ainda instabilidade na fundação. Três integrantes da equipe de gestão pediram demissão em março deste ano, em uma carta enviada à presidência do órgão.

Ebnézer Maurilio Nogueira da Silva era diretor do departamento de Fomento e Promoção da Cultura Afro Brasileira; Raimundo Nonato Souza Chaves era coordenador-geral do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra; e Roberto Carlos Consentino Braz era coordenador-geral de Gestão Interna.

Eles alegaram "ingerência de forma generalizada", reclamaram da falta de interlocução com a presidência e afirmaram que, mesmo com maioria, foram voto vencido em decisões do órgão. Eles também abriram ações judiciais contra Camargo.

Nunca houve algo assim na história da Fundação Palmares. Foi praticamente uma rebelião desses colaboradores que estavam insatisfeitos com a incompetência sem medida com que o atual presidente atua. Desde a sua chegada, a Fundação perde seu protagonismo e a sua causa
Elói Ferreira de Araújo, ex-ministro-chefe da Secretaria Especial de Política de Promoção e Igualdade Racial

Segundo Ferreira, as ações de Camargo podem transformar a instituição em uma pasta burocrática, sem missão ou propósito "Atualmente, o órgão não é capaz de articular políticas culturais para a comunidade negra junto aos outros órgãos do governo", diz.

Camargo ironizou a saída dos diretores em seu perfil no Twitter. "Estou sendo questionado na Justiça do Trabalho por exonerar esquerdistas e nomear direitistas. É óbvio que devo trabalhar com quem me odeia, discorda de todas as minhas opiniões e tenta, de todas as formas, me derrubar do cargo." Novos nomes ainda não foram divulgados.

Sobre a demissão, a Fundação Palmares alega em nota que sempre houve diálogo entre os servidores e a presidência. "Em respeito à experiência dos servidores, adquirida com o passar dos anos, opiniões são ouvidas", afirma.