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Ex-chefe de UPPs prevê mais tragédias com uso político de operações no Rio

Kathlen Romeu, 24, morta em ação policial no Rio - Reprodução/Instagram_rogeriojorgeph
Kathlen Romeu, 24, morta em ação policial no Rio Imagem: Reprodução/Instagram_rogeriojorgeph

Herculano Barreto Filho

Do UOL, no Rio

11/06/2021 04h00

Coronel da reserva da PM e ex-comandante das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), Robson Rodrigues relaciona o excesso de autonomia das polícias do Rio com ações desastrosas nas favelas. O antropólogo prevê mais tragédias a partir do crescente uso político das operações.

"O Estado que deveria levar a Justiça acaba fazendo justiçamento." Em entrevista ao UOL, ele avaliou os casos mais recentes, como a ação de terça-feira (8) no Complexo do Lins, que causou a morte da designer de interiores Kathlen Romeu, e a operação policial no Jacarezinho, a mais letal da história do Rio.

Rodrigues critica o que entende ser um retrocesso na política de segurança pública aliado a um discurso populista sustentado no confronto armado ao tráfico de drogas. "É o discurso fácil e a receita populista de enfrentamento para aliviar a sensação de medo que permeia a cidade do Rio de Janeiro."

Na reserva da PM desde 2015, Rodrigues hoje atua como pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj (Universidade do Estado do Rio).

Em 2011, foi o coordenador das UPPs, projeto da PM que priorizava a aproximação com moradores das favelas e defendia uma política de segurança pública avessa aos confrontos —a proposta, hoje abandonada, contrasta com o discurso de enfrentamento do "tiro na cabecinha" de criminosos com fuzis, expresso pelo ex-governador Wilson Witzel (PSC) em 2018 ao jornal O Estado de S.Paulo.

Robson Rodrigues foi comandante das UPPs no Rio - Reprodução/Globonews - Reprodução/Globonews
Robson Rodrigues foi comandante das UPPs no Rio
Imagem: Reprodução/Globonews

A eleição do Witzel foi pelo voto do medo, quando a população apostou em um azarão com um discurso fácil, que ia na onda dessa receita política de enfrentamento. Ele extinguiu a Secretaria de Segurança Pública e criou secretarias independentes de Polícia Militar e Civil. Isso foi um retrocesso. Vemos ações desastrosas por conta desse excesso de autonomia dada por Witzel

Confira a seguir trechos da entrevista de Robson Rodrigues ao UOL:

Inversão de papéis das polícias e palanque político

"Com esse grande grau de autonomia das polícias, há uma tentativa de resolver problemas de segurança pública de forma rasa e com inversão de papéis.

A Polícia Militar quer fazer investigação sem meios legais para isso, acreditando na sua capacidade de aquisição de dados. Aposta, no seu imaginário, que o crime organizado está dentro das favelas. A Polícia Civil, que deve investigar, quer fazer operações bélicas.

É preciso desfazer as lambanças que Witzel fez [com a extinção da Secretaria de Segurança Pública]. Não vejo no governador [Cláudio Castro] uma liderança capaz de conduzir esse processo de mudança. Ele está se mantendo com quase as mesmas posturas de Witzel. As ações policiais mais contundentes estão servindo de palanque político. É possível que outras tragédias aconteçam."

Caso Kathlen: tragédia precisa ser evitada

"Há rapidez nos discursos que responsabilizam os criminosos nessas ações. Se a polícia quiser dar resposta para policiais equivocados nas suas condutas sem analisar as evidências e fazer uma autocrítica, já está fadada ao fracasso.

É como aquele pai que passa a mão na cabeça dos filhos quando cometem os seus erros. Como vão aprender? Da mesma forma funciona com relação às polícias. Lá no Lins, morreu uma menina grávida em uma tragédia que poderia ter sido evitada.

Pode ter havido alguma falha de protocolo ou instabilidade emocional dos policiais na ação. Quando a polícia se coloca em posição de defesa incondicional, acaba descartando a possibilidade de reconhecer eventuais erros."

06.05.2021 - Policiais carregam baleado durante operação contra o tráfico na comunidade do Jacarezinho, no Rio, deixa dezenas de mortos - REUTERS / Ricardo Moraes - REUTERS / Ricardo Moraes
06.05.2021 - Policiais carregam baleado durante operação contra o tráfico na comunidade do Jacarezinho, no Rio, deixa dezenas de mortos
Imagem: REUTERS / Ricardo Moraes

Operação no Jacarezinho

"Há uma insistência das polícias nessas práticas que não dão certo. Elas passam a mensagem de que há um combate à criminalidade. Mas, na verdade, a polícia nem toca nessas estruturas [do crime organizado].

Aí, eu pergunto: o que mudou na estrutura da criminalidade no Jacarezinho depois dessa operação? Eu diria que nada. Diria que o crime organizado ficou ainda mais fortalecido pela desmoralização do Estado e das forças policiais.

A falta de capacidade reflexiva faz com que alguns policiais acreditem que isso vai resolver o problema da segurança pública. Brutalizados pelas circunstâncias e em condições precárias de trabalho, eles viram bombas-relógio, que podem explodir a qualquer momento. Aí, faltam mecanismos de punição e controle, que acabam gerando impunidade nessas ações.

A população acaba sofrendo e sendo violentada em seus direitos pelos dois lados: pela criminalidade e também pela própria polícia."

Discurso populista de incentivo ao confronto armado

"Sempre existem questões ideológicas, surgem esses discursos fáceis e populistas de enfrentamento para aliviar a sensação de medo que permeia a cidade do Rio de Janeiro. É a receita política usada por políticos menos escrupulosos.

Eles [políticos] apostam na fragilidade emocional da população e no medo que sentem da violência.

E tem também a elite da sociedade, que só quer que a polícia afaste o perigo que vem das comunidades. Pensam: 'matou quem tinha que matar. Então, tudo bem'.

Perda da credibilidade e corrupção

"Há uma forma desastrada como a polícia lida com a política de segurança pública. Isso gera perda da credibilidade das polícias nas comunidades. Mas também há uma desmoralização da classe política por conta da história recente de corrupção que atingiu o governo do estado.

Isso cria um ambiente de fragilidade moral, benéfico para as atividades criminosas. É necessário investir em uma mudança cultural e na modernização das polícias."

A falência das polícias

"Deveria haver uma atuação mais profissional das polícias para fragilizar o crime organizado, impossibilitando o fluxo de capital e de mercadorias que proporcionam a manutenção dessas estruturas criminosas.

Quando a polícia apresenta o crime organizado como os soldados do tráfico que fazem a proteção das favelas, é possível ver a incapacidade de se fazer investigação adequada. São sinais da falência do sistema de segurança pública. O Estado que deveria levar a Justiça acaba fazendo justiçamento.

O Estado que só quer se manter mediante a força traz prejuízos para a população. Isso também gera desgaste nos policiais que querem fazer um bom trabalho, mas acabam sendo atraídos para uma guerra desnecessária."