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Em 15 anos, Rio teve quase 2.000 mortos em mais de 480 'chacinas policiais'

6.mai.2021 - Policiais carregam corpo durante operação com 28 mortos no Jacarezinho - REUTERS / Ricardo Moraes
6.mai.2021 - Policiais carregam corpo durante operação com 28 mortos no Jacarezinho Imagem: REUTERS / Ricardo Moraes

Igor Mello

Do UOL, no Rio

23/12/2021 04h00

Desde 2007, as forças policiais do Rio de Janeiro foram responsáveis por 482 operações com alta letalidade na região metropolitana, com um saldo de 1.962 mortos (veja gráfico abaixo). Só nessas ações ocorreram 15% de todos os homicídios por intervenção policial no Grande Rio nos últimos 15 anos.

Os dados constam em um levantamento feito pelo Geni (Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos), que reúne pesquisadores de segurança pública da UFF (Universidade Federal Fluminense), com exclusividade para o UOL.

Os pesquisadores definem como chacinas policiais todas as ações oficiais com três ou mais mortos civis.

Mesmo com a vigência da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que restringe as operações em favelas durante a pandemia de covid-19, 2021 vem registrando um aumento expressivo do número de chacinas policiais e das mortes provenientes delas.

Até o fim de novembro, foram 160 mortes no Grande Rio —um aumento de 27% em relação a todo ano anterior.

Questionadas pelo UOL, a Polícia Militar e a Polícia Civil afirmaram que suas operações priorizam a preservação de vidas e tentaram capitalizar a redução de índices criminais nos últimos anos.

O governador Cláudio Castro (PL) também foi procurado para comentar os dados, mas até o momento não respondeu às perguntas enviadas.

Para cada policial vitimado, 150 mortos

Apesar de as autoridades sempre afirmarem que os mortos são criminosos que estavam confrontando os policiais, os dados mostram uma grande desproporção entre as vítimas dos dois lados —o que, na visão de especialistas ouvidos pelo UOL, sugere que parte dos homicídios ocorreu em situações ilegais e de uso abusivo da força.

Nas 482 ações que resultaram em chacinas, 13 policiais foram assassinados. Isso representa uma proporção de 150 mortes de civis para cada agente.

Segundo Daniel Hirata, coordenador do Geni/UFF, a falta de controle sobre as polícias permite que esse tipo de operação seja realizado há décadas no Rio sem consequências.

Ele destaca que parte considerável das ações mais letais é o que se chama de "operação vingança", geralmente realizadas após assassinatos de policiais.

Neste ano, dois casos emblemáticos tiveram esse estopim: uma ação da Polícia Civil na Favela do Jacarezinho (zona norte do Rio), em maio, terminou com 27 civis mortos —o maior número de vítimas da história da segurança pública do Rio. As mortes ocorreram após o policial civil André Frias ser baleado no começo da incursão. Levado para o hospital, ele morreu horas depois.

Já uma série de operações da PM no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, terminou com nove mortes em um fim de semana em novembro. A justificativa oficial das ações, que contaram com a participação do Bope (Batalhão de Operações Especiais), foi a morte de um agente do 7º BPM (São Gonçalo) durante uma incursão na região dias antes.

"O primeiro motivo para explicar essas chacinas é a falta de controle democrático da atividade policial. E isso se expressa particularmente na não-regulamentação das operações, que são as circunstâncias em que essas chacinas legalizadas pelo Estado acabam acontecendo. Muitas vezes como uma espécie de resposta a um ataque a uma unidade policial ou à morte de um agente", analisa.

Hirata lembra que os discursos de autoridades e até mesmo documentos oficiais reproduzem a narrativa de que essas ações são uma resposta a ataques contra policiais, perpetuando uma lógica de guerra permanente.

"Isso sai enunciado por autoridades do governo do estado em uma espécie de equivalência das polícias com os grupos criminais. Esses grupos atuam de forma vingativa e extremamente letal contra a polícia ou outros grupos que atacam ou matam seus membros", critica.

Após as mortes no Jacarezinho, a cúpula da Polícia Civil se apressou em dizer que na operação não haviam ocorrido mortes com vítimas em situação de rendição ou desarmadas. Já o governador Cláudio Castro definiu a situação como "fiel cumprimento de dezenas de mandados de prisão".

Da mesma forma, depois da operação no Salgueiro, Castro defendeu os policiais. "Não creio que sejam recorrentes as ações, mas apoiamos as polícias, e não o erro. Mas ninguém vai camuflado pro mangue trocar tiro com a polícia de [arma de] airsoft. Se as pessoas estavam camufladas no mangue, certamente coisa boa não estavam fazendo", alegou.

Desde 2019, o governador tem comando direto sobre as polícias. Dias após assumir o mandato, o então governador Wilson Witzel (PSC) extinguiu a Secretaria de Segurança e deu status de secretários aos comandantes da PM e da Polícia Civil.

Para Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Rio destaca que a difusão de fuzis nas mãos de criminosos e policiais cria um cenário de instabilidade maior. O sociólogo pondera contudo que o estado vive um período de retrocessos e descontrole das forças policiais.

"Em termos de política de segurança, esses dados mostram que todas as tentativas de fazer o controle do uso da força por parte dos governos fracassaram. Ou, ao contrário, os governos incentivaram esse padrão. Não é normal ter quase 2.000 mortos nessas ações", afirma.

"Não é uma questão de falta de preparo ou de protocolos. É uma decisão de as corporações tornarem padrão esse tipo de operação. Passam a considerar que essas 2.000 mortes são um dano colateral aceitável, e não são."

Lima ainda aponta Cláudio Castro como um dos responsáveis pela escalada de letalidade nas polícias fluminenses. Em sua visão, apesar de tentar cultivar uma imagem mais moderada, ele segue a mesma linha de ação adotada por Witzel no Rio e do presidente Jair Bolsonaro (PL) no plano federal.

"É o mesmo grupo, a mesma visão de tudo. E Castro é a mesma figura que aceitou ser vice-governador do Witzel com seu discurso do 'tiro na cabecinha'", lembra.

STF adia discussão sobre operações

O STF adiou para fevereiro, após o recesso do Judiciário, o julgamento da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, na qual o relator, ministro Edson Fachin, restringiu liminarmente as operações durante a pandemia —tendo a decisão referendada pelo plenário posteriormente.

A ação, proposta pelo PSB, diz que a política de segurança pública fluminense é inconstitucional e pede que o STF obrigue o estado a adotar uma série de medidas para conter a violência policial, como a criação de um plano de redução de letalidade, a implantação de câmeras nos uniformes dos agentes e a proibição que helicópteros sejam usados como plataforma de tiros.

O julgamento da ação foi reiniciado na semana passada, mas não foi concluído a tempo. Com isso, a previsão é de que as discussões só sejam retomadas no início de 2022.

Em ofício ao ministro Luiz Fux, presidente do STF, o PSB e uma série de entidades da sociedade civil que atuam como amicus curiae na ADPF solicitaram sessões extraordinárias para concluir o julgamento.

Usando cálculos do Geni/UFF, elas afirmam que as polícias do Rio devem matar 338 pessoas durante o período de férias dos ministros.

Outro lado

Em nota, a Polícia Civil afirmou que preserva as vidas de policiais e cidadãos e culpou os criminosos pelos confrontos durante suas operações.

"A Secretaria de Estado de Polícia (Sepol) informa que todas as ações são baseadas nos pilares de inteligência, investigação e ação e têm alcançado redução constante nos índices de violência registrados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP). Inclusive, com resultados, em alguns setores, que são os melhores desde o início da série histórica. A instituição reforça que as operações priorizam sempre a preservação de vidas, tanto dos agentes quanto dos cidadãos, e os confrontos só existem quando os policiais têm de reagir à ação de criminosos."

Na mesma linha, a PM citou a redução de diversos índices de criminalidade e reforçou que "seu principal objetivo é uma atuação segura para a população do Rio de Janeiro e a impreterível preservação de vidas".