'Tropa doente': como escala virou ponto de tensão e morte entre policiais
Representantes das forças de segurança citaram as jornadas exaustivas para compensar o baixo efetivo como uma das principais razões para explicar os problemas psicológicos dos servidores de segurança pública. Nesta semana, seis policiais foram assassinados em dois ataques de colegas em que as escalas de trabalho foram o foco das desavenças.
Escalada de casos de policiais matando colegas
Levantamento feito pelo UOL registrou 13 assassinatos de policiais por colegas em pouco mais de dois anos no país. Um em cada três desses casos ocorreu de abril para cá, indicando uma escalada da violência.
Mais da metade desses crimes entre 2021 e 2023 foram cometidos por policiais militares. Também ocorreram assassinatos envolvendo policiais civis, militares do Exército, bombeiros, guardas municipais e policiais penais.
Em três dos cinco homicídios deste ano, houve desavenças ligadas à escala de serviço. Representantes das forças de segurança também citaram problemas mentais sem tratamento e estafa por estarem em grupos de WhatsApp de ocorrências quando deveriam estar de folga.
O Estado não está conseguindo repor o efetivo policial adequado. E, por isso, os policiais que estão nas ruas são obrigados a fazer horas extras, abrindo mão das folgas. Muitos sofrem com problemas psicológicos, mas não procuram ajuda profissional porque não querem ficar rotulados. A tropa está doente."
Heder Martins de Oliveira, presidente da Federação Nacional de Praças da PM
Os policiais sofrem com assédio moral, abuso de poder e escala abusiva. E ainda há a resistência em admitir a necessidade de afastamento por problemas psicológicos ou psiquiátricos. A sociedade exige que esse policial seja um herói, sem dores físicas ou emocionais. A saúde mental dele é uma ferida aberta, que tem que ser cicatrizada."
Raquel Gallinatti, diretora da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil
No Hospital da PM de São Paulo, a patente do oficial aparece antes na tarjeta de 'médico'. E, quando o praça vai ser atendido, a hierarquia também está na frente dos problemas dele. Na prática, há casos de policiais com problemas psiquiátricos que acabam trabalhando doentes até quando deveriam estar de folga."
Raul Marcolino, diretor da Associação de Praças de SP
Escala exaustiva e assassinatos
A primeira morte nesta escalada de violência aconteceu em 5 de abril deste ano. O sargento Rulian Ricardo Adrião da Silva foi morto a tiros após "surto" por convocação extra pelo capitão Francisco Carlos Laroca Junior em um alojamento em São Paulo. Antes de ser morto, o PM enviou áudio a um colega dizendo que estava trabalhando sem folgas e que estava no seu limite.
Na madrugada de domingo (14), o inspetor Antônio Alves Dourado matou quatro colegas na delegacia de Camocim (CE). Em audiência de custódia, ele tentou se justificar citando escalas excessivas de trabalho. "Fiquei seis meses sem ter final de semana com a minha família", disse.
Na segunda-feira (15), o sargento Claudio Henrique Frare Gouveia matou dois colegas a tiros de fuzil na cidade de Salto (SP). A defesa dele falou que o PM havia reclamado da escala de trabalho dias antes do crime e disse que ele alegou ser perseguido.
Escala e 'hora extra' no WhatsApp
A escala na PM de São Paulo varia de 12 horas de trabalho por 36 horas de folga, ou 24 horas de trabalho com 48 de folga. O problema, segundo especialistas, é que muitos policiais fazem uma espécie de "hora extra" em grupos de WhatsApp, onde discutem ocorrências mesmo durante o período de folga.
"Em algumas regiões, os policiais são acionados em grupos do WhatsApp durante a folga pelos próprios moradores. Esse policial não desliga. A nossa orientação é que eles saiam desses grupos", disse Heder Martins de Oliveira, presidente da Federação Nacional de Praças da PM.
O que diz a polícia
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo disse que os servidores têm acesso a uma rede de atendimento psicossocial. "[São] mais de 120 psicólogos distribuídos por todo o estado", diz um dos trechos da nota.
"Medidas de prevenção e promoção de saúde mental são adotadas em razão da complexidade da atividade policial, independentemente do local onde ela é exercida", complementa o texto.
O UOL obteve um atestado para que o inspetor se ausentasse do trabalho no dia em que matou quatro colegas no Ceará. Contudo, a Polícia Civil local disse não ter recebido o documento.
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