'A vida dele dependia disso': a saga para salvar envenenado por lagartas

Um jovem de 25 anos corria risco de morrer depois de se intoxicar gravemente com o veneno de uma taturana (Lonomia obliqua).

O esforço de uma cientista, no entanto, mudou o curso da história —e ainda ajudou a popularizar o uso de um soro para salvar mais pessoas de ataques de lagartas.

O ano era 2004 e o jovem, de São Paulo, visitava a região do Parque Estadual de Terra Ronca, em São Domingos (GO). Sem querer, ele encostou em uma árvore cheia de lagartas.

Não demorou muito para que começasse a ter os primeiros sintomas da intoxicação pelo veneno produzido pelas taturanas: uma dor lancinante, como se a mão estivesse sendo queimada por fogo.

Lonomia obliqua: acidentes em São Paulo são mais comuns de janeiro e abril
Lonomia obliqua: acidentes em São Paulo são mais comuns de janeiro e abril Imagem: José Felipe Batista/Comunicação Instituto Butantan

Ele procurou, então, um posto de saúde, onde mandaram tomar um antialérgico e um remédio para dor. Medicado, ele pegou estrada para voltar a São Paulo, mas os sintomas continuavam: náuseas, sangramento na gengiva e umas manchas estranhas, arroxeadas, pelo corpo. Era sinal de equimose, ou seja, rompimento de vasos sanguíneos.

Visita ao hospital por acaso

Faltava pouco para o Natal —era dia 21 de dezembro— e, sem saber de nada, a quilômetros de distância, na capital paulista, a pesquisadora Fan Hui Wen, buscava seu sobrinho em uma festa.

Ela era diretora do Hospital Vital Brazil (HVB), do Instituto Butantan, e a festinha acontecia perto da unidade. Fan decidiu passar no hospital para uma visita rápida.

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Assim que chegou, no fim da tarde, foi logo chamada por uma enfermeira. Uma urgência. Uma médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto estava ao telefone —e pedia ajuda ao HVB para tratar um paciente.

O rapaz já estava no interior, a caminho de casa, quando começou a passar muito mal. Era semana do Natal. Não teria como acionar Ministério da Saúde, autoridades. Foi quando a médica me disse que conseguiria providenciar com uma companhia aérea um espaço para o envio do soro no voo naquela noite. Eu não pensei duas vezes.
Fan Hui Wen, médica e pesquisadora

Fan providenciou ampolas do soro antilonômico, para tratar a intoxicação. A substância tinha sido desenvolvida desde 1996 no Butantan —e o Brasil até hoje é o único no mundo a produzir o soro.

A médica chamou o motorista do hospital e seguiu, com o sobrinho dormindo na ambulância, para o aeroporto de Congonhas.

O voo partiria às 22 horas e já eram 19h30 quando ela entrou com o soro no veículo.

Foi uma correria. Meu sobrinho estava ainda fantasiado devido à festinha, estava vestido de Power Ranger. E eu só pensava que tinha de chegar a tempo no aeroporto. O motorista correu o máximo que podia.
Fan Hui Wen, médica e pesquisadora

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"Quando cheguei no aeroporto, deixei meu sobrinho na ambulância, ainda dormindo, e corri para a fila de embarque do voo. Passei na frente de todo mundo e comecei a falar e gesticular, tentando explicar a urgência do que estava acontecendo. 'Preciso mandar esse soro com urgência para Ribeirão Preto. A vida de uma pessoa depende disso', eu dizia para a atendente, que me olhava incrédula."

Soro na cabine do piloto

Em meio à confusão, a médica teve a ideia de fazer uma declaração de próprio punho, assinada, explicando a gravidade do caso e pedindo que o soro fosse enviado ao hospital de Ribeirão Preto.

O plano deu certo. A caixa de isopor com o antiveneno, Fan soube depois, foi levada pelo próprio piloto da aeronave, na cabine de comando.

À meia-noite, começou o tratamento do paciente. E o resultado foi o melhor possível: o sangramento parou e os padrões de coagulação voltaram ao normal. O jovem recebeu alta após dois dias de cuidados médicos. A reportagem não conseguiu contato com ele.

Caso acelerou política de distribuição de soros pelo Brasil
Caso acelerou política de distribuição de soros pelo Brasil Imagem: Instituto Butantan
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Soro pelo país

Essa foi a primeira vez que um caso de intoxicação pelo veneno da lagarta da espécie Lonoma obliqua foi registrado em Goiás, explica Fan, que hoje atua como diretora técnica de produção de soros do Butantan.

A maioria dos casos, explica a médica, estava concentrada na região do Sul. Devido ao avanço do desmatamento sobre outras áreas, porém, esses bichos começaram a ser encontrados de forma mais distribuída no território nacional.

Naquela época, o soro antilonômico, produzido exclusivamente pelo Instituto Butantan, não estava amplamente disponível no Brasil. E o acidente em Goiás serviu como catalisador para uma política pública de descentralizar a distribuição do soro antilonômico e torná-lo mais acessível em todo o país.

Atualmente, o Butantan produz e fornece ao governo federal 5 mil ampolas por ano.

Acidentes podem ser graves e fatais

Veneno inicialmente causa dor, inchaço, dor de cabeça, náuseas e vômitos
Veneno inicialmente causa dor, inchaço, dor de cabeça, náuseas e vômitos Imagem: José Felipe Batista/Comunicação Instituto Butantan
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Em São Paulo, os acidentes envolvendo a Lonomia ocorrem geralmente de janeiro a abril, tanto em áreas urbanas quanto rurais.

Em caso de envenenamento, é crucial aplicar o soro imediatamente para prevenir complicações. O soro antilonômico age na neutralização do veneno, principalmente quando aplicado precocemente.

O veneno inicialmente causa dor, inchaço, dor de cabeça, náuseas e vômitos —os sintomas podem progredir para hemorragias e problemas de coagulação.

A gravidade do incidente varia de acordo com a quantidade de veneno e a intensidade do contato com as cerdas da lagarta —em casos graves, pode causar insuficiência renal aguda e até mesmo a morte.

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