'Não abandonei meu pai, ele me trocou por Bolsonaro e me acha satanista'
A tatuadora Fernanda (nome fictício) foi expulsa de casa aos 26 anos, entre os dois turnos das eleições de 2018, que deram vitória a Jair Bolsonaro (PL). A posição política dela, oposta à do pai, fez com que o contato com a família se tornasse mínimo nos últimos anos. Com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nestas eleições, o pai se enfureceu e qualquer chance de diálogo desmoronou de vez.
"Há um tempo, minha irmã e eu percebemos que meu pai nos restringiu das postagens dele. Minha mãe ainda manda uma mensagem ou outra, mas sempre o básico perguntando como estou", diz a jovem, que apoiou em 2018 a candidatura de Fernando Haddad (PT) e votou em Lula nestas eleições.
Antes da eleição, este ano, os pais de Fernanda até tentaram ajudá-la financeiramente. "Eu disse que não precisava, mas trouxeram algumas coisas para minha casa", conta a jovem. Durante a vacinação contra a covid-19, ela teve de insistir para que o pai tomasse as doses do imunizante e usou até a Bíblia como argumento sobre cuidar do próximo.
Agora, depois do segundo turno, Fernanda planejava receber em casa, na capital paulista, uma visita dos pais, que moram no interior. O motivo do encontro era o casamento de um amigo para o qual toda a família foi convidada. De última hora, eles desistiram de visitá-la.
"Meu pai não quis mais vir e, consequentemente, minha mãe também não veio. Afinal, na cabeça do meu pai, eu sou comunista, satanista, abortista, quero o país virando uma Venezuela e quero que comam cachorro", lamenta Fernanda.
Eu não abandonei meu pai. Ele me trocou pelo Bolsonaro mesmo
Fernanda (nome fictício), tatuadora
A história de Fernanda é um exemplo de como a polarização política fez ruir as relações familiares. As eleições mais acirradas da história do Brasil, que resultaram em brigas nas ruas e discordâncias nas igrejas, também causaram embates e afastamentos dentro dos lares brasileiros.
Nos últimos dias, relatos de discussões sobre política foram compartilhados nas redes sociais. Jovens contam que foram expulsos de casa ou encontraram um clima tão hostil durante a corrida eleitoral e após a vitória de Lula que não conseguem mais conviver entre quatro paredes.
Também há brigas entre irmãos e cunhados. Famílias habituadas a encontros no fim de semana suspendem as reuniões com medo de que o resultado das eleições vire discussão. E quem antes era visto como "orgulho da família" passou a ser chamado de "comunista doutrinado".
O gestor ambiental Ricardo Demarco, de 29 anos, conta que estava acostumado a discordar dos parentes quando a política virava assunto dos churrascos de domingo. Com a pandemia e os ânimos aflorados pelas eleições, a situação se intensificou. "Passou do limite do tolerável."
No mês passado, em meio à campanha eleitoral que deu vitória a Lula, ele foi convidado a sair de casa pelo próprio pai.
"Eu e meu pai nunca tivemos uma relação muito boa, mas dessa vez ele já estava irritado com alguma coisa. Cheguei em casa e ele veio dizendo para eu dar um jeito na minha vida até novembro e pedir emprego para o PT", lembra Ricardo, que mora em Rio Grande, no interior do Rio Grande do Sul.
"Ele deixou claro que a decisão era por causa de política." Três semanas depois, eles ainda não voltaram a se falar.
Já na casa da autônoma Bruna (nome fictício), de 36 anos, política nunca foi um assunto considerado problema. Tudo mudou em 2018 e se intensificou ao longo dos últimos meses, em sua relação com os primos e o irmão.
"Me perguntei muitas vezes para ver se identifico o ponto de partida [das discussões], mas não consigo entender e ainda é bem difícil. O maior sentimento que guardo hoje, em relação a tudo isso, é a decepção", explica.
Bruna revela que, em 2018, ela e outros parentes votaram em Bolsonaro. Hoje, se arrepende. "Quando começou a surgir a história da troca de comando na Polícia Federal, percebi que tinha cometido um erro. Com a pandemia, foi só piorando."
Ainda tenho parentes que perderam pessoas próximas para a covid-19 e defendem Bolsonaro
Bruna (nome fictício), autônoma
Ela não sabe dizer por que uma chave virou em sua cabeça, mas não na das pessoas próximas. Lembra que ficou angustiada ao ver o atual presidente imitando pessoas com falta de ar porque perdeu uma avó nessas condições, antes da pandemia.
"Não consigo esquecer o que meu avô contava, do que foi esse sofrimento. E quando ele [Bolsonaro] imitou, isso veio na minha cabeça. Eu postei nas redes sociais que, por causa de todo esse sadismo e falta de empatia, eu votaria contrário. Meus primos ficaram mais chocados com o post do que com a memória da nossa avó."
Fim de ano em suspenso
Para Ricardo, agora, é difícil dialogar. "Na minha família, acho que por enquanto fica assim. Nem quero entrar em contato. Não se consegue mais dialogar com pensamentos diferentes."
As festas de fim de ano também estão em suspenso. O gestor ambiental acredita que não vai conseguir passar o Natal em casa dessa vez.
Bruna também não está contando com reuniões familiares no fim do ano.
"Vai além da política. Você vê quem essas pessoas são por trás: preconceitos, falas, modo de se portar, atitudes. Você vai perdendo o interesse, desfaz vínculos e mantém o mínimo de contato possível."
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