Império de views: fábrica de cortes de Marçal abre novo capítulo na eleição
Um vídeo, milhares de "cortes". Pablo Marçal (PRTB) saiu derrotado das eleições para prefeito em São Paulo, mas construiu uma máquina de campanha nas redes sociais que desafiou a legislação e abriu um novo capítulo para disputas futuras.
O "império de views" do ex-coach colocou Marçal em evidência durante os meses que antecederam a disputa —ainda que suas contas principais nas redes sociais tenham sido suspensas por ordem judicial.
Sem tempo de TV, mas presença forte nas redes, Marçal conseguiu 1,7 milhão de votos —ficou fora do segundo turno, mas por diferença de apenas 56,8 mil votos para o segundo colocado, Guilherme Boulos (PSOL).
O pilar da estratégia nas redes sociais foram os chamados "cortes": trechos de falas do ex-coach replicados em outros perfis.
'Eu pago em dinheiro'
A prática não começou às vésperas da eleição. Desde 2023, ele incentiva seguidores a reproduzirem trechos de suas falas que chamem a atenção para ganhar audiência em seus próprios perfis.
O que é fazer corte? É assistir a um pedaço de um vídeo, pegar uma mensagem. Corte pode ter 15 segundos, 30, 45; quem tiver mais visualizações eu pago em dinheiro.
Pablo Marçal, em 2023
Na ocasião, o coach falou que abriria vagas para um "campeonato" de cortes em seus stories. Segundo ele, a medição do sucesso dos pupilos seria feita toda semana.
Marçal afirmou no ano passado que "pagava em dinheiro" para quem fizesse sucesso com esses trechos. "Ninguém dá conta de ter dois bilhões de visualizações no TikTok se não fizer isso", disse.
"Tem garotos que estão ganhando R$ 400, R$ 600 mil fazendo isso", falou, sem provar os supostos ganhos. Em maio deste ano, uma de suas seguidoras disse nas redes sociais que ganhou "uma premiação diária e uma premiação mensal da competição dos cortes do Pablo Marçal" e que, em 16 dias, fez mais de R$ 3 mil.
Mudança de discurso
Depois, quando se tornou candidato à prefeitura, o discurso de Marçal mudou —ele passou a dizer que não colocava dinheiro nos cortes. O pagamento por esse tipo de divulgação fere a lei eleitoral.
"As pessoas fazem os cortes, usam minha imagem, elas ganham dinheiro [por conta própria] e eu vou continuar deixando todo mundo fazer", disse.
Em agosto, a Justiça suspendeu suas redes, em meio à suspeita de que ele estaria dando dinheiro de uma de suas empresas aos canais de cortes —o que é proibido. Pelas regras eleitorais, é vedado contratar "pessoas físicas ou jurídicas que façam publicações de cunho político-eleitoral em suas páginas na internet ou redes sociais".
Segundo o magistrado, um documento mostrou que pagamentos a donos desses perfis saíram de uma conta ligada a uma empresa de Marçal. O candidato se defendeu afirmando que a decisão não tem fundamento.
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Quero receberSuas redes oficiais continuaram suspensas, mas isso não impediu que logo as contas reservas ganhassem milhares de seguidores —e que os cortes continuassem disseminados nas plataformas.
Para Rose Marie Santini, professora da Escola de Comunicação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e fundadora do NetLab, um laboratório de pesquisa sobre internet e redes sociais, o ecossistema das redes sociais nas eleições desafia o controle por parte das autoridades (veja as regras abaixo).
Não pode ter um terceiro fazendo anúncio, publicidade paga para candidato. Agora, como o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] vai punir isso? Não sei. Porque realmente é uma bagunça...vai para além das redes dele.
Rose Marie Santini
Ações de vigilância ainda são limitadas por parte das plataformas e do governo, dizem os especialistas. Em resposta ao UOL, que questionou quais as ferramentas utilizadas para monitorar anúncios, o TSE enviou o link para o aplicativo Pardal, disponível para Android e iPhone. A ferramenta desenvolvida pela Justiça Eleitoral registra queixas desde 16 de agosto.
Império e 'lojinha'
No TikTok, basta uma simples busca por seu nome e a palavra "cortes" para ter acesso a dezenas de perfis que usam fotos de Marçal como avatar e publicam trechos de suas entrevistas —mesmo depois do primeiro turno das eleições.
Vários têm nomes que parecem genéricos, com destaque para a palavra "império", que se repete diversas vezes entre os usuários.
Antes do primeiro turno, os cortes destacavam participações de Marçal em debates e entrevistas.
Depois, passaram a falar de planos de Marçal para os próximos anos, evidenciaram o significado da votação expressiva que recebeu dos paulistanos, além de repercutirem o laudo falso que ele divulgou sobre Boulos na véspera da eleição.
As contas têm em comum um link na biografia, que leva a cursos de como ganhar dinheiro fazendo cortes das falas do coach e a "lojinhas" com produtos ligados a Marçal —mas sem mencionar envolvimento dele no "projeto".
Ao UOL, o TikTok disse que "não permite propaganda política paga, publicidade política ou arrecadação de fundos por políticos e partidos políticos (para eles ou para outras pessoas)". A plataforma afirma usar sistemas automatizados e vigilância humana para encontrar os perfis, mas destaca que os próprios usuários podem fazer denúncias de postagens suspeitas.
Novidade: como ganhar dinheiro na rede
Para Arthur Ituassu, professor de comunicação política da PUC-Rio, a presença de Marçal nas redes sociais se diferenciou da do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Ele lembra que Bolsonaro foi um dos precursores do fenômeno de virais —conseguiu 30 vezes mais engajamento que o 2º deputado mais comentado na internet em 2014.
Mas a presença digital de Bolsonaro aconteceu em um momento "orgânico" das mídias sociais, contrastando com o atual investimento em anúncios online. Além disso, Marçal trouxe outro componente: o de como ganhar dinheiro com a rede.
Isso tem uma configuração piramidal muito forte: os que estão lá em cima ganham e depois vem outros. Todo mundo 'se ajuda'. Esse é um componente completamente diferente do que vimos até agora em termos de campanha digital, porque trabalha dentro dos princípios da monetização digital, de como ganhar dinheiro com a rede.
Arthur Ituassu, professor da PUC-Rio e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital
Esse esquema tornou Marçal independente de seus perfis pessoais: mesmo que eles fossem derrubados (e foram), ele criou uma forte rede de propaganda por trás —direta ou indiretamente, diz o especialista.
O coach é a "ponta do iceberg" de um comportamento que deve virar tendência.
Berlusconi, Silvio Santos, Ronald Reagan... são políticos que procuraram transformar o seu capital social em capital político. Eu diria que o Marçal segue esse padrão, só que a diferença é que ele faz isso totalmente adaptado ao ambiente digital.
Arthur Ituassu
Ituassu afirma que a presença de figuras grandes no digital pode estimular o "descompasso" entre a democracia e a agilidade das mídias.
"A democracia é lenta. Você precisa negociar com todo mundo para tentar mudar alguma coisa. Isso se une a uma oferta de discurso radical de quem vem do digital. Existe uma civilidade na televisão, por exemplo, que a internet não exige. Na televisão, você tem uma mensagem igual para todo mundo. E aí a lógica é mirar o centro, onde está a maior parte das pessoas, não os extremos."
Redes x eleições: o que pode e não pode
Páginas na internet mantidas por candidatos ou partidos podem veicular propaganda desde que os endereços utilizados sejam informados previamente à Justiça Eleitoral e que as páginas estejam hospedadas em provedor direta ou indiretamente no Brasil.
É permitido pagar para impulsionar conteúdos nas redes sociais, mas apenas nas páginas ligadas a pessoas da campanha.
O impulsionamento só pode ser contratado e pago por partidos, federações, coligações, candidatos e seus representantes.
Qualquer anúncio deve conter o número do CPF ou CNPJ responsável pelo impulsionamento, além da expressão "propaganda eleitoral", sempre de forma clara para o público.
O banco de dados da rede em que está o anúncio deve ser atualizado em tempo real e disponibilizar ferramenta de consulta acessível.
No caso de material veiculado em sites ou perfis de pessoas que não estão concorrendo, a publicidade deve ser sempre gratuita, não pode ser impulsionada, e o autor não pode receber remuneração.
É proibido o anonimato. A livre manifestação do pensamento na internet é assegurada durante a campanha eleitoral, desde que a pessoa possa ser identificada.
Procurada sobre os cortes e a suspeita de pagamento, a assessoria de Marçal disse que a estratégia ocorreu antes da pré-campanha.
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