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Refugiado, arquiteto e futuro doutor: como um sírio recuperou sua carreira no Brasil

Mohammad Najjar recebe primeiro registro profissional de um refugiado no Brasil - Carolina Farias/ UOL
Mohammad Najjar recebe primeiro registro profissional de um refugiado no Brasil Imagem: Carolina Farias/ UOL

Carolina Farias

Colaboração para o UOL, do Rio de Janeiro

27/11/2017 04h00

Quando uma bomba caiu cem metros à frente de seu escritório em Latáquia, cidade na costa da Síria, Mohammad Najjar decidiu que ali não era mais um lugar seguro para seus filhos crescerem. Desde 2011 o país vive uma guerra civil que já provocou o êxodo de mais de 4 milhões de pessoas. Em 2015, o arquiteto, hoje com 33 anos, resolveu sair do país natal e veio para o Brasil.

Em outubro deste ano, ele conseguiu o primeiro registro profissional de um refugiado sírio no país, segundo o órgão que concedeu a licença, o CAU-RJ (Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro).

"Minha vida é muito boa desde a primeira semana que cheguei aqui. Eu digo que é graças a Deus e com a ajuda do Brasil. Foi tudo rápido", diz Najjar, sobre sua trajetória desde que escolheu o solo brasileiro para fincar raízes.

Formado em arquitetura de 2007 e com mestrado na Universidade de Westminster, em Londres, Inglaterra, Najjar tinha uma vida estável ao lado da mulher Hind Zeitouneh, 29, e seus filhos, Nancy e Khaled, então com 3 anos e 1 ano e 6 meses. Apesar de ser filho de um construtor, o que lhe inspirou a seguir a carreira de arquiteto, o sírio tinha escritório próprio e uma carreira promissora.

"Eu tinha o que aqui é igual a da classe média alta. Tinha tudo. Sem guerra eu não precisaria ir embora. Mas a situação estava ficando complicada. A última bomba que eu vi foi a cem metros da frente do meu escritório. Tem gente de fora da cidade mandando bombas, sem alvo definido. Civis morrem, homens do Exército morrem, não se sabe quando a bomba vai chegar"

Mohammad Najjar

Além dos riscos de bombardeios, a cidade onde Najjar vivia com a família tinha um clima tenso e a liberdade de ir e vir dos cidadãos era ameaçada. "Não se pode fazer o que quer, sair de casa depois de certo horário. Tem sequestros. O trabalho também foi diminuindo. Na guerra não tem construção, tem destruição", disse Najjar, que também sofreu perdas com o conflito.

"Todos nós sírios perdemos. Quem não perdeu amigos, perdeu gente do seu sangue. Quem não perdeu parentes, perdeu dinheiro. É muito ruim. Prefiro evitar falar", disse.

Fuga

Como tinha dois filhos pequenos, Najjar decidiu que não podia se arriscar para tentar refúgio na Europa, onde sírios e refugiados de outros países chegam pelo mar. "Tem muitos refugiados sírios na Europa, mas nenhuma embaixada dá visto no passaporte. A gente tem que chegar ilegal e depois consegue visto como refugiado. Eu não podia, tenho família. Em 2015, nosso vizinho com a mulher e dois filhos viajaram para entrar ilegalmente. Ele chegou sozinho. A mulher e os dois filhos morreram no mar. Ele ia para a Alemanha", contou.

O arquiteto decidiu então ir para a Malásia, país que aceita sírios sem visto, e de lá "descobriu" o Brasil.

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"Na Síria não tem como pedir vistos porque as embaixadas foram fechadas. Na Malásia peguei visto de 90 dias no aeroporto. Fiquei dois meses procurando países que aceitam sírios. O Brasil é o único país do mundo que aceita sírios como refugiados e com visto no passaporte", disse Najjar.

O Brasil tem cerca de 10 mil refugiados de 82 nacionalidades de acordo com o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os países com maior número de solicitantes de refúgio no Brasil em 2016, segundo o órgão, foram Venezuela (3.375), Cuba (1.370), Angola (1.353), Haiti (646) e Síria (391). Desde o início da guerra na Síria, 3.772 sírios solicitaram refúgio no Brasil.

Najjar e família vieram direto para o Rio de Janeiro, decisão que também foi pensada enquanto estava na Malásia.

"São Paulo, Rio e Brasília são famosas no mundo. Na capital acho que seja complicado para estrangeiros. São Paulo é bom, mas fiquei com medo porque queria me integrar com o mundo brasileiro, então melhor evitar o mundo árabe. Em dois anos que vivi na Inglaterra vi muitas famílias sírias e árabes que viviam no mundo só deles. O problema é que depois de dez, 20 anos, não falam inglês porque só falam árabe todos os dias. No Rio tem menos árabes", contou o arquiteto sírio.

Morador da Taquara, bairro da zona oeste carioca, quando chegou com a família Najjar passou pela rotina de vários outros sírios que vivem no Rio: vendeu comida árabe para obter renda.

Sua sorte mudou sete meses depois de ter chegado ao Rio, quando foi visto em uma reportagem do jornal "O Globo" pelo professor Luís Otávio Cocito de Araújo, do Departamento de Construção Civil do Centro de Tecnologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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A partir da esquerda: o professor Assed Haddad, Mohammad Najjar e o professor Luís Otávio Cocito de Araújo
Imagem: Carolina Farias/ UOL

"Tinha uma foto dele com as crianças. Eu estava sensibilizado com a questão síria. Queria fazer alguma coisa. Vi que ele era arquiteto. Apesar de aqui ser o Departamento de Construção Civil, temos uma relação estreita com a arquitetura. Pensei que poderia estender as mãos, fazer algo por ele", disse Araújo.

O professor levou o sírio para a UFRJ pensando em dar-lhe uma oportunidade na área acadêmica. Para começar, pediu para Najjar fazer o projeto de sua sala -- que abriga área de reunião, uma sala onde fica Araújo e outras pequenas salas.

"Ele é muito qualificado. Eu não queria ajudar arrumando um emprego de lavar pratos, de cozinhar em um restaurante árabe. Pedi para fazer o projeto. Ele entendeu os conceitos e fez da melhor forma possível", afirmou o professor.

Araújo apresentou Najjar ao professor Assed Haddad, do mesmo departamento, coordenador do PEA (Programa de Engenharia Ambiental), que o propôs fazer doutorado na área.

"Perguntei se ele não ia validar seus diplomas e ele se interessou em participar do PEA como doutorando, se inscreveu e passou. Está indo bem. Temos nove artigos trabalhados e cinco publicados. É um bom aluno. Agora conseguiu a bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)”, disse Haddad sobre o benefício que o sírio ganhou em junho.

Com a vivência na universidade, o arquiteto sírio começou a pensar em seguir a carreira acadêmica e tornar-se professor um dia, além também de exercer a profissão de arquiteto, para a qual agora tem registro.

"Najjar sempre se mostrou com um potencial muito grande. Tudo que conseguiu é mérito dele. Ninguém o tratou como o 'coitadinho refugiado'. Passou pelo processo de seleção e em condições que não estão niveladas aos outros alunos. Está há dois anos no Brasil, tem família, filhos. Com certeza quando terminar o doutorado vai ser professor, tem o potencial"

Luís Otávio Cocito de Araújo

Najjar ficou emocionado com suas palavras.

Segundo Júlio Cláudio da Gama Bentes, coordenador da comissão de ensino e formação profissional da CAU-RJ, a Lei de Migração possibilita a facilitação para a obtenção do registro profissional por parte dos refugiados.

"Fizemos uma análise abreviada. Ele não tinha todos os itens necessários, mas pela situação atípica e pela lei ele foi aceito. Ele é graduado, fez mestrado, está cursando o doutorado e tem vontade de permanecer no país. Então definimos por dar o registro definitivo. É uma questão não só de solidariedade, mas de ajudar na necessidade humana que é exercer a profissão", disse Bentes.

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Mohammad Najjar e sua família
Imagem: Divulgação/ CAU-RJ

Família brasileira

Em julho deste ano a família de Najjar aumentou. Ele ganhou uma filha, que recebeu o nome em homenagem ao país que o acolheu.

"Eu e minha mulher procuramos nomes e encontramos um, de origem romana, Lionela, que significa 'graça de Deus' Como estamos no Brasil ficou Maria Lionela porque Maria é nome do Brasil", disse Najjar.

O arquiteto ainda tem família na Síria, mas não imagina voltar a morar no país de origem, mesmo se o conflito terminar um dia.

"Os brasileiros abriram as portas para nós e isso é importante. Na Inglaterra, por exemplo, isso não acontece. Morei dois anos lá e saí de lá sem nenhum amigo inglês. Agora, com dois anos no Brasil, tenho mais de 200 amigos brasileiros, nenhum sírio. Brasileiros gostam de ajudar estrangeiros. A Europa fecha a porta por você ser sírio, aqui não", conclui Najjar.