Topo

Bolsonaro é 'risco' para democracia, diz juiz que mandou prender Pinochet

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Maria Carolina Trevisan e Jamil Chade

Colaboração para o UOL, em São Paulo e Genebra

24/09/2019 04h01Atualizada em 24/09/2019 08h36

Resumo da notícia

  • Garzón, juiz que pediu a prisão de Pinochet, criticou Bolsonaro por elogiar ditaduras
  • Em 1998, ao julgar Pinochet na Espanha, Garzón revolucionou o direito internacional
  • Ele criou o entendimento de que é possível julgar violações de direitos humanos fora do país onde o crime ocorreu
  • Garzón vem ao Brasil nesta quarta e participa de evento sobre a Comissão Nacional da Verdade

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) representa um "risco muito alto" para a democracia, avalia Baltasar Garzón, o ex-juiz espanhol que decretou, em 1998, a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet e transformou o direito internacional.

Em entrevista exclusiva ao UOL antes de embarcar ao Brasil, Garzón atacou a atual política de segurança pública brasileira, teceu duras críticas contra o ex-juiz e hoje ministro Sergio Moro e pediu atenção contra o crescimento do neofascismo em diferentes partes do mundo.

O espanhol também classificou de "inadmissível numa democracia" os comentários elogiosos de Bolsonaro a ditadores sul-americanos e, em especial Pinochet. "A mensagem que se pode transmitir é de que tudo vale", disse o ex-juiz.

Garzón foi afastado por 11 anos de seu cargo de juiz na Espanha por ter ordenado escutas telefônicas ilegais entre advogados e réus em um caso de corrupção, conhecido como "Trama Gurtel". Ele foi condenado por abuso de poder pelo Supremo Tribunal espanhol.

A decisão acabou encerrando sua carreira, justamente no momento em que ele também apurava crimes do franquismo. Mas seu inquérito reabriu o debate sobre o regime autoritário na Espanha.

Como juiz, ganhou fama mundial ao pedir a prisão do general chileno Augusto Pinochet, denunciar violações de direitos humanos na prisão de Guantánamo e abrir ações contra integrantes do grupo separatista terrorista basco ETA.

Também atuou como advogado do fundador do site WikiLeaks, Julian Assange, enquanto ele esteve exilado na Embaixada do Equador em Londres.

O espanhol estará em São Paulo nesta semana para um evento promovido pelo Instituto Vladimir Herzog e pela OAB. Nesta quarta-feira (25), ele é o principal convidados do seminário "Violência de Estado e Impunidade: recomendações da CNV 5 anos depois", na sede da OAB em São Paulo.

O evento terá a participação também de Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP e Diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP, Flavia Medeiros, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (UINCT), Eduardo Cardoso, Perito Criminal Federal, Luciano Hazan, Membro do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários das Nações Unidas, Glenda Mezarobba, integrante do Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog, e do ex-ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi.

Eis os principais trechos da entrevista:

O que significou sua decisão de pedir a prisão de Augusto Pinochet?

Baltasar Garzón - Foi um impulso para dar um avanço fundamental ao princípio de jurisdição universal, que significa que qualquer juiz do mundo, em qualquer lugar, tem a obrigação na aplicação de normas internacionais e pactos da ONU. (...) A partir dai, mudou o direito penal internacional. De alguma forma, o que se viu é que era possível aplicar esses princípios universais que emanavam não apenas da legislação interna dos países. Mas dos tratados internacionais.

O de menos é que Pinochet não foi condenado pois foi surpreendido pela morte antes. Mas sim, tivemos outras condenações. Outro aspecto foi que ativou, graças a cooperação jurídica internacional, as legislações nacionais, eliminando as leis de "Ponto final", como na Argentina que declarou sua nulidade, ou as auto-anistias como no Chile. E que a Justiça dos respectivos países se mexeu para que não existisse a impunidade.

No Brasil, porém, a lei de Anistia continua em vigor. Essas leis impedem que crimes contra a humanidade sejam investigados?

Não. Os crimes contra a humanidade, como os crimes de guerra, genocídio, são imprescritíveis. Há uma convenção da imprescritibilidade dos crimes e há resoluções mais que fundamentadas nas diferentes jurisdições e sobretudo, numa à qual o Brasil pertence, que é a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Há de se lembrar que existem muitas resoluções dessa Corte na Costa Rica, nascida do Pacto de San José, especificamente o caso do Araguaia, em que a corte expressamente compeliu ao estado brasileiro e à Corte Suprema que procedessem com as investigações desses fatos. (...)

O que ocorre é que foram feitas interpretações restritivas. Tratou-se de bloquear essa investigação. Anistias, que podem ser um mecanismo de finalização ou de transição de conflitos armados ou situações de autoritarismo à democracia, nunca podem ser aplicadas para crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra. (...)

Quem assim aplica não está cumprindo a normativa internacional. Isso dentro de um país pode ter o percurso que queira nas normas e nos tribunais. Mas o que sim pode produzir é a aplicação do princípio da jurisdição universal em outros países. E dou exemplo relacionado com os crimes franquistas na Espanha. Eu tentei investigar os crimes franquistas. Houve uma decisão do tribunal da Audiência Nacional e depois do Tribunal Supremo dizendo que não podiam ser investigados. E o que se determinou é que, em virtude do princípio de jurisdição universal, as vítimas foram para a Argentina, apresentaram a queixa correspondente e uma juíza federal abriu um processo por crimes contra a humanidade. Hoje, está em tramitação.

Enquanto isso, ocorreu também com os crimes cometidos pela polícia de (Alfredo) Stroessner, no Paraguai. Não havia investigações, e a Argentina admitiu uma queixa contra esses possíveis autores.

O que pensa sobre o comentário de Bolsonaro contra a alta comissária da ONU, Michelle Bachelet, e seu pai morto no regime de Pinochet?

Menosprezar e criticar o general (Alberto) Bachelet, que sofreu tortura, me parece um desatino total.

A mensagem que se pode transmitir é de que tudo vale. É de que aquele que impulsionou a ditadura que tanta dor e tanto dano causou, com tortura, desaparecimentos forçados, tinha uma justificativa. E isso é inadmissível numa democracia. É inadmissível num Estado de direito. E é inadmissível com base nos princípios básicos da defesa dos direitos humanos e das normas internacionais.

Ou não se conhece essa norma, ou se menospreza. No primeiro caso, é muito grave. E, no segundo caso, inaceitável. Portanto, qualquer responsável político, não importa a ideologia que tenha, precisa estar consciente de que representa não apenas aqueles que votaram por ele, mas todo o povo brasileiro. Não pode menosprezar as vítimas dessa forma.

Alguns estados e o ministério da Justiça e Segurança Pública defendem políticas que endurecem a ação das polícias como forma de reprimir o tráfico e o crime organizado. Qual a sua opinião sobre o uso da violência nesse enfrentamento?

Quando acima dos direitos de garantia dos cidadãos e cidadãs está "a segurança", não em si, como uma segurança jurídica e verdadeira para todos e todas, mas sim como um mecanismo de imposição que conduz e inclusive justifica a repressão, o que se consegue é aumentar a própria insegurança. Não apenas se procura combater o crime, mas também se combatem as pessoas que supostamente eles consideram que não são socialmente defensáveis, o que é duplamente pernicioso.

Me parece uma barbaridade, e em todos os países em que se colocou em prática essa doutrina de segurança nacional, que parece emanar daquela antiga doutrina dos anos 1970, conduz a uma limitação e a violações permanentes dos direitos fundamentais, o que não pode levar a nenhum outro lugar a não ser a uma absoluta insegurança jurídica. É um gravíssimo erro. Ademais da perda de vidas humanas, que é o que já existe, também se abre a porta para oportunismos e que cada um se sinta na condição de fazer justiça com as próprias mãos.

Sobre o combate à corrupção, acredita que alguns governos podem manipular ou distorcer esse enfrentamento? Em particular, como o senhor vê o caso do ex-juiz da Lava Jato e atual ministro da Justiça, Sergio Moro?

O que vejo, e me preocupa profundamente, é que em alguns países como o Brasil e outros da América Latina, Europa e África, se utilizam de mecanismos que denominamos como lawfare, que é o uso politico do Direito como arma de assédio e de pressão política contra os oponentes. Isso é perigosíssimo.

Utilizar a Justiça e os mecanismos judiciais para investigar determinados crimes que devem ser investigados, como é a corrupção, mas só em um sentido determinado para que ideologicamente seja conveniente politicamente enfocar esse direcionamento é muito perigoso e portanto absolutamente perverso para o Estado de direito.

Se a isso se soma um posicionamento posterior com ações que determinaram consequências políticas gravíssimas como foi o encarceramento do ex-presidente Lula, impedindo-o de concorrer às eleições por uma condenação das mais questionáveis como estamos sabendo agora, supõe uma grave suspeita de parcialidade por parte de quem deveria ter mantido a máxima imparcialidade e independência, o que parece que não foi assim.

O senhor passou pela política durante um período. Como fazer essa transição da Justiça para a política sem perder a capacidade de ser independente? O que o senhor enfrentou na política que não conhecia na área judiciária?

Em princípio não tem porque haver problema o fato de um funcionário ou autoridade pública que presta seus serviços no Poder Judiciário transitar ao âmbito político. Outra coisa é que tipo de controles e que tipo de requisitos se devem estabelecer para prevenir algo que hoje em dia é evidente, que é a aparência de imparcialidade, ao menos, mas não apenas a imparcialidade e também a parcialidade.

Consequentemente, quando se tomam decisões como as que foram tomadas no Brasil por esse profissional que está sendo altamente questionado posteriormente, pelo que se está descobrindo, há um componente de aproximação a quem foi beneficiado nessa eleição, o que levanta suspeitas: ou atuou mal naquele momento ou está atuando mal agora.

(...) Dito isso, tanto na entrada como na saída, deveriam ser estabelecidos mecanismos correspondentes para prevenir qualquer dúvida na atuação anterior ou posterior de quem toma essa decisão. Penalmente e processualmente há mecanismos de seleção, de regulação, obrigações de atuar em determinadas formas, de se manifestar diante da comissão correspondente de cada uma dessas ações, etc, que transmitiriam a tranquilidade por parte de quem tem que ter a segurança de que não há armadilhas.

No caso do Brasil e de Lula, especificamente, ocorre que há inconsistência dos elementos probatórios, armados por quem depois toma essa atitude. No mínimo é possível pensar que houve graves irregularidades, que a decisão pode ter sido socavada em seus próprios fundamentos e que alguém pode estar cumprindo pena por feitos que não cometeu.

O que pensa do fortalecimento da extrema direita no Brasil, na América Latina e na Espanha, como é o caso do novo partido político Vox?

Muito preocupante. Não é somente no Brasil, não apenas na Espanha. Há uma tendência que está ressurgindo e começa a arrastar a América Latina a partir dos Estados Unidos, contra os movimentos populares, contra quem deu tudo para que as coisas fossem diferentes. Há um ataque sistemático utilizando os mecanismos judiciais que apontam a uma só direção. Na Europa, movimentos como o de [Viktor] Orbán na Hungria, como o de [Matteo] Salvini na Itália, como na Polônia, como o Vox na Espanha, são exemplos de que algo estamos fazendo mal ao relaxarmos nas conquistas democráticas.

A democracia não se conquista para sempre, de uma só vez. É algo que se tem que defender a cada momento. Sobretudo quando se trata dos direitos humanos e fundamentais e das garantias, não se pode ceder nenhum só passo a esses discursos populistas de extrema direita, que estão tratando de reformular e ressuscitar tendências neofascistas, ultraliberais, que atacam esses direitos e essas conquistas populares.

(...). No momento, o que vemos é que caminhamos para trás. Espero que isso seja meramente transitório porque, se não, realmente vamos com a armaria acionada. De forma sistemática, estamos vendo com o que se está publicando, os casos de Intercept, como Julian Assange, [Eward] Snowden e tantos outros em que não há reação de investigação da denúncia e, sim, investigação de quem denuncia ou difunde essas informações. Estamos em um período de retrocesso muito perigoso e temos que denunciá-lo.

O que houve com esses países que passaram por um processo democrático e que agora enfrentam ameaças às suas democracias?

Creio que essa questão é muito importante. A desmemória de um país, o esquecimento induzido ou oficial, fazer uma transição sem ter saldado as contas anteriores é um dos motivos, quando não o principal, para que ocorram coisas que atualmente deveriam já estar sumamente superadas. Temos o caso do Brasil debatendo e comprovando como há ataques à própria Comissão Nacional da Verdade, como se está questionando o relato da ditadura, como se está negando e reeditando de alguma forma discursos absolutamente inaceitáveis.

Para mim é fundamental e é uma questão de futuro. Se não somos capazes de ter clara essa necessidade, dessa verdade e dessa justiça, então, é difícil que não voltemos a cair nos mesmos problemas.

Há riscos à democracia com Bolsonaro?

Com Bolsonaro e com todos aqueles responsáveis políticos que não tomam por bandeira principal a defesa irrestrita dos direitos humanos, da verdade, da memória e da Justiça. Creio, precisamente, que essa pessoa não integra essas características, portanto o risco é muito alto.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado no "resumo da notícia" e no primeiro parágrafo do texto, Baltasar Garzón decretou a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet em 1998, e não em 1988. O texto foi corrigido.