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Sob Bolsonaro, fundação do Itamaraty vira palco de fake news sobre covid-19

Carolina Marins

Do UOL, em São Paulo

05/10/2020 04h00

Vinculada ao Ministério de Relações Exteriores, a Funag (Fundação Alexandre de Gusmão) tem realizado, durante a pandemia de covid-19, uma série de seminários questionando evidências científicas e colocando em suspeição a palavra de cientistas, médicos e jornalistas. Há ainda críticas às instituições internacionais como a OMS (Organização Mundial da Saúde), questionamento das medidas de proteção e críticas a prefeitos e governadores.

Os eventos semanais têm como objetivo discutir os desafios e perspectivas para o Brasil no pós-pandemia. Especialistas em política internacional ouvidos pelo UOL, contudo, veem uso político do Itamaraty e uma tentativa de politizar a pasta como já ocorreu com outros ministérios. Os vídeos são transmitidos nos canais da Funag e retransmitidos por blogs de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Em uma palestra no dia 3 de setembro, um dos palestrantes diz que máscaras são perigosas para pessoas saudáveis: "A máscara não só é inócua no combate à pandemia mas ela é também nociva, causa problemas de saúde". A informação é falsa: o uso correto das máscaras reduz a quantidade de partículas virais expelidas e, portanto, ajuda a conter o avanço da pandemia.

Em outro momento no mesmo seminário, outro convidado diz que a pandemia foi "instrumentalizada por comunistas e globalistas para controle político" e elogia o termo "comunavírus" cunhado pelo chanceler Ernesto Araújo. A obrigatoriedade de vacinas, o socialismo e engenharia social são temas também comuns nos eventos.

O globalismo, como já mostrou o UOL Confere, é um tema recorrente em fake news, assim como a informação de que o vírus teria sido criado em laboratório, o que também não é verdadeiro.

Os convidados são sempre oriundos de sites e blogs conservadores e não há nomes ou mesmo outros eventos com pontos de vistas diferentes. Durante as transmissões, o presidente da fundação, Roberto Goidanich, tende a concordar e incentivar os palestrantes.

O UOL procurou o Itamaraty e a Fundação Alexandre de Gusmão nos dias 24, 25 e 30 de setembro via e-mail, mas não obteve um posicionamento até o fechamento desta reportagem. Se enviado, ele será publicado neste texto.

Politização do ministério

A Fundação, criada em 1971, tem por objetivo difundir os temas relacionados à política externa brasileira. Entre as suas atribuições estão a publicação de livros e a realização de debates, seminários e cursos. Mas a agenda fortemente ideológica e com apelo popular chama a atenção em uma instituição historicamente considerada mais pragmática.

"O trabalho da Funag é tentar romper com o isolamento do Itamaraty e trazer a sociedade para uma política externa mais democrática", explica o professor de Relações Internacionais da PUC-SP, David Magalhães.

[A Funag] Não é para virar um bunker de ideias da nova direita, o que se tornou com Ernesto Araújo, com aqueles blogueiros que nunca teriam espaço na Funag porque não têm publicação, não têm inserção em comunidade científica, não tem nada. São ideólogos que vivem de guerra virtual e cultural nas redes sociais"
David Magalhães, professor da PUC-SP

Magalhães ressalta que mesmo no governo Lula, quando houve acusações de partidarização do Itamaraty, a instituição foi utilizada dessa forma. Já o professor da FGV Oliver Stuenkel diz que é normal o uso do Ministério de Relações Exteriores para mobilizar a base eleitoral e que os governos Lula e FHC já o fizeram, porém não de forma tão propagandista.

"A política externa é uma política pública do governo, então é normal que pense sobre qualquer política pública em termos eleitorais, agora o grau e a intensidade com a qual a política externa está se transformando em uma ferramenta da propaganda bolsonarista é sem precedentes."

Ex-chanceler dos governos Lula e Dilma Rousseff, Celso Amorim concorda com o pesquisador. "Nunca houve essa coisa obscurantista que está ocorrendo agora. Eu acho que isso é um comportamento negativo. Além de não servir para nada do ponto de vista prático, desmoraliza a própria instituição. O Itamaraty nunca teve uma reputação tão baixa", diz.

"Essa atitude atual é totalmente irracional. Ao mesmo tempo em que você defende uma política comercial ultraneoliberal que seria totalmente ligada a uma ideia de globalidade, você faz tudo em defesa da soberania nacional. É um poço de contradições e irracionalidade. E eu acho que isso não é uma coisa por acaso, porque se forma uma cortina de fumaça que permite a esse governo tomar as decisões mais contrárias ao interesse nacional", completa Amorim.

O professor da FGV, Oliver Stuenkel, explica que há uma pressão sobre o Itamaraty em meio a um processo de politização das instituições públicas. "O Itamaraty é o único ministério que tem um processo seletivo meritocrático e que, portanto, não se deixa politizar com tanta facilidade. Então, o governo Bolsonaro enxergou no Itamaraty uma ameaça ao projeto de politizar a máquina pública."

Esses eventos que estão acontecendo agora buscam dar algum verniz de substância intelectual às ideias articuladas pelo chanceler Ernesto Araújo. O problema obviamente é que não há um pensamento que tenha uma coerência teórica por trás."
Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV

O UOL solicitou entrevista sobre o tema ao ministro Ernesto Araújo, que não respondeu aos pedidos da reportagem.

Trechos estratégicos

O professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, Pedro Feliú, explica que, embora o Itamaraty seja visto como mais pragmático ao longo dos governos, ele ainda é muito dependente do presidente da República e de suas ideologias.

É essa lógica do governo de contato com uma parcela da opinião pública e, aí, talvez o curioso seja usar o Itamaraty para isso. No fundo, o que se quer é mobilizar a opinião pública, convencer, persuadir, numa questão absolutamente bem doméstica. A pandemia é global, mas você decide internamente se vai ter máscara, se vai ter isolamento, etc."
Pedro Feliú, professor da USP

O professor chama atenção para o fato de, após o fim dos seminários ao vivo no YouTube, os vídeos serem recortados em trechos estratégicos e com títulos chamativos para a base bolsonarista. "Máscaras são nocivas", "O avanço do comunismo 2.0", "O que fazer com a OMS", "Como destruir um país" e outros títulos são comuns.

"A ideia é ocupar espaços e confrontar o que eles chamam de hegemonia progressista ou de esquerda na mídia, nas universidades, nas editoras, e fazer uma espécie de confrontação", completa David Magalhães.

Confrontações e respostas

A postura do Itamaraty já causou pedidos de esclarecimentos por deputados do Psol, que enviaram ao chanceler Ernesto Araújo um requerimento exigindo explicações acerca da presença olavista na política externa.

O chanceler respondeu justificando a execução dos seminários devidos aos "likes" que eles geram. Segundo o documento obtido pelo UOL via o colunista Jamil Chade, os participantes de eventos são definidos "conforme o potencial interesse e relevância para a sociedade brasileira" e que a "Funag se esforça para que seus eventos contribuam para o pluralismo do pensamento [...], o que significa também incluir visões conservadoras".

Em resposta, o Instituto Diplomacia para Democracia, comandado pelo diplomata Antonio Cotta, tem realizado seminários questionando os temas abordados pela Funag e trazendo acadêmicos para a discussão. O professor David Magalhães, que coordena o Observatório da Extrema Direita, já foi um dos convidados desses eventos.

"A ideia é procurar fazer um contraponto, ampliar o debate sobre os temas que têm sido discutidos, sobre as polêmicas que têm sido levantadas, as releituras históricas e as tentativas de doutrinação ideológicas que têm sido feitas ali. E em segundo lugar, ampliar o entendimento e reflexões sobre o que esse pessoal vem formulando, as narrativas que eles têm criado", explica o diplomata.