Como o Irã mostrou que a Rússia pode sobreviver às sanções internacionais?
Um país no qual há uma questão nuclear latente, cuja economia depende de commodities energéticas e que hoje sofre sanções do Ocidente. Em um jogo de adivinhação, talvez o primeiro palpite fosse Rússia, mas o Irã também se encaixa na descrição.
Teerã é alvo de medidas há mais de quatro décadas, mas elas se intensificaram a partir de 2012 e ganharam ainda mais corpo em 2018, quando houve o desembarque do acordo nuclear dos EUA, então comandado por Donald Trump.
Desde então, há uma atuação americana para que não se compre petróleo iraniano. Assim, o Irã é alvo de bloqueios econômicos para tentar trazê-lo de volta à mesa de negociação para um novo acordo —o que está em andamento, inclusive com o relaxamento de restrições.
Moscou também enfrenta sanções há mais de dez anos, desde a guerra na Geórgia (2008). As medidas ganharam mais corpo com a anexação da Crimeia, em 2014, e muito mais força após a invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro deste ano. Bancos foram alvos de restrições. Indivíduos e empresas tiveram seus bens congelados. E grandes corporações estrangeiras abandonaram o país.
As estratégias de russos e iranianos no enfrentamento das sanções não diferem muito. Segundo Cristina Pecequilo, professora de relações internacionais da Unifesp e na pós-graduação do programa San Tiago Dantas, os dois países se baseiam na diversificação das parcerias externas, buscando fugir do núcleo ocidental —ou seja, aliando-se principalmente à China, além do entorno regional e do Oriente Médio.
Alianças regionais
A parceria regional é importante para viabilizar para os iranianos transações financeiras. "Por exemplo, para comprar um computador que não pode ser adquirido em dólar, eles efetuam o pagamento pelos bancos da região", explica o economista Fernando Azevedo, especialista em guerra financeira.
A China, por sua vez, alivia a economia de Teerã ao comprar petróleo, em uma aproximação que aumentou a partir de 2012. Antes disso, afirma Azevedo, as sanções não eram tão intensas.
"Na década de 1990, as sanções proibiam americanos e empresas e o governo dos EUA de atuar junto com o Irã. Em 2006, isso mudou, e Washington começou a coagir terceiros, como os europeus, para eles também não fazerem negócios no Irã", pontua o economista. "Fica pior porque não é só mais um país, ainda que poderoso, mas que está fazendo sanções diretas e indiretas." A situação atingiu seu ápice em 2012, quando Teerã buscou a aproximação com outros parceiros.
Busca por acordos
Outra prática tem sido buscar acordos com nações na mesma situação, aí vendo-se uma ligação entre a própria Rússia e o Irã em questões militares e de tecnologia, para que Moscou consiga acessar drones e satélites, exemplifica Pecequilo. Os presidentes dos dois países inclusive se encontraram recentemente em Teerã.
Não só nas parcerias, porém, é que se encontra a explicação para Teerã driblar as sanções ocidentais. "O Irã conseguiu fazer um procedimento, que a Rússia imita agora, que é vender petróleo de maneira informal", explica Azevedo. "Eles conseguem ocultar a origem, adotando alguns mecanismos como desligar o transponder dos navios e falar que veio de outro país do Oriente Médio."
No caso russo, destaca o economista, é mais difícil de esconder a origem, pois o gás e o petróleo têm sido vendidos a um preço muito mais baixo. Ainda assim, Azevedo contrapõe que os EUA não têm conseguido fazer com Moscou o que fez com Teerã, que é proibir terceiros de negociar com o país comandado por Putin.
"Outros países, na América Latina, África e Ásia ainda fazem comércio com os russos inclusive do ponto de vista petróleo, até porque Moscou está vendendo muito barato e faz isso por fora do sistema ocidental [para enviar pagamentos internacionais], que é o Swift, adotando um sistema deles, que está sendo implementado", o que, na prática, alivia as sanções.
"Colchão financeiro"
Moscou, porém, não contou apenas com esse preparo político e econômico estratégico na diversificação de parcerias. "A Rússia tinha um colchão financeiro bastante importante. Não sei se preparando-se para um eventual conflito, que vinha se desenhando faz muito tempo, mas tinha reservas cambiais muito altas", explica Héctor Saint-Pierre, professor da Unesp e fundador do Gedes (Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional).
Parte desse colchão foi garantido aumentando as reservas de ouro para dar lastro ao rublo, e a compra de moedas estrangeiras, como a chinesa yuan e o euro.
"Esse foi um movimento central com relação ao fortalecimento das reservas, tanto que a Rússia tem conseguido bancar todos os seus compromissos", explica Pecequilo. "E continua-se naquele dilema permanente em que ou se corta plenamente o consumo de gás da Rússia ou sempre vai entrar alguma receita por algum caminho. Esse é o nó de toda a questão. Ele era em fevereiro e continua sendo agora."
Dependência russa
É justamente a questão energética que enfraquece as sanções impostas a Moscou, diferentemente do que é visto com Teerã. Há países como a Bulgária, onde 85% do consumo é abastecido pelo gás russo, e a Alemanha, onde a fatia é de cerca de 50%.
A insegurança gera um tensionamento, com uma pressão tanto das empresas que precisam da energia para funcionar quanto dos consumidores, que sofrem com o aumento dos preços causado pela escassez do produto. Nesse sentido, a União Europeia já anunciou uma meta de reduzir em 15% o consumo desde agora, no verão, para tentar garantir alguma reserva para os meses de frio.
"Até que ponto as populações europeias estão dispostas a pagar pelo sacrifício da Ucrânia?", pontua a professora da Unifesp. "A Europa tem feito uma propaganda muito grande dizendo que vai importar mais gás dos Estados Unidos ou da Nigéria, mas isso demanda uma outra infraestrutura que hoje é muito incipiente."
Por isso, sublinha Saint-Pierre, as sanções têm um impacto muito maior para a Europa enquanto a Rússia funciona mais ou menos bem. "As empresas que saíram, algumas já retornaram ou foram substituídas, tomadas por uma administração russa", explica.
O professor da Unesp acrescenta que as medidas levaram Moscou a tomar medidas que no fim a favoreceu, como o pagamento do petróleo em rublos. Isso levou a uma valorização sobre o dólar, enquanto a moeda americana depreciou no mercado internacional.
Além do gás, Saint-Pierre alerta que há também um impacto sobre o trigo, base alimentar europeia. "Houve um erro de cálculo", analisa o professor, acrescentando os impactos políticos com a queda de governos na Europa e a perda de popularidade de Joe Biden, nos EUA, enquanto Putin vê seus índices favorecidos internamente. "Então as sanções funcionaram muito bem para a Rússia", conclui.
Diferenças
Os dois países, claro, ocupam posições estratégicas diferentes no contexto internacional. O território russo é cerca de nove vezes maior que o iraniano (cerca de 1,6 milhão de quilômetros quadrados), o que implica uma gama maior de recursos disponíveis —inclusive um poder nuclear já desenvolvido.
Além disso, a Rússia não deixa de ser uma nação europeia, o que lhe proporciona uma conjuntura econômica e política que afeta as relações com o restante do mundo, como pontua Pecequilo. "Então é mais perigoso ter uma Rússia instável do que eventualmente um Irã instável", analisa.
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