Sob Milei, Argentina critica termos e se afasta de consensos no G20

A Argentina do ultraliberal Javier Milei tem provocado embates nas discussões dos grupos de trabalho do G20. O país se recusou a assinar dois documentos prévios, um sobre igualdade de gênero e outro que abordava o desenvolvimento sustentável. Especialistas não descartam que a Argentina possa se negar a assinar a declaração final do G20 —o que seria considerado uma ofensa diplomática ao Brasil. Nesta quarta (13), Milei determinou que a Argentina abandonasse a COP29, a conferência do clima da ONU, no Azerbaijão.

O que aconteceu

Consenso sobre gênero deveria ser "fácil", mas Argentina foi o único país que não concordou. Um diplomata de um dos países que integram a cúpula diz que foi uma surpresa a atitude da Argentina no grupo de trabalho do G20 sobre empoderamento da mulher, realizado em outubro, em Brasília. Considerava-se que não haveria muita margem de discordância —ao contrário de temas como transição energética, em que há mais divergência, mas, mesmo assim, conseguiu-se chegar a uma declaração final conjunta.

Até países onde mulheres têm menos liberdade, como Arábia Saudita e Indonésia, assinaram o documento. Já a Argentina decidiu não endossar a declaração conjunta de última hora, porque não queria discutir a definição de gênero.

Trecho de documento de reunião do G20 sobre empoderamento das mulheres, ao qual Argentina não aderiu
Trecho de documento de reunião do G20 sobre empoderamento das mulheres, ao qual Argentina não aderiu Imagem: Reprodução/Arte UOL

Argentina também foi o único país a não assinar declaração de grupo com chefes de Parlamentos do G20. O texto, aprovado no início de novembro, trata sobre justiça climática e desenvolvimento sustentável; mudanças em organismos multilaterais; ampliação da representatividade feminina em espaços decisórios; e combate às desigualdades de gênero, entre outros pontos.

Senador Rogério Carvalho (PT-SE) disse à TV Senado que a Argentina não concordou "com nada" da declaração. "Todos têm consenso de que é preciso garantir a preservação da vida humana no planeta e para isso é preciso fazer um esforço global em torno da redução da emissão de gases do efeito estufa. É uma questão da democracia a necessidade da reconfiguração dos órgãos multilaterais para que a gente possa ter espaços efetivamente de tomada de decisão", afirmou o senador.

Prioridades do Brasil no G20 vão na contramão de interesses de Milei. O Brasil definiu três prioridades para o G20: combate à fome e à pobreza, transição energética com desenvolvimento sustentável e reforma das organizações multilaterais. Essa agenda, no entanto, vai na contramão dos líderes da extrema direita, como Milei e o norte-americano Donald Trump, eleito presidente dos Estados Unidos.

Não há qualquer radicalismo identitário ou posições 'globalistas' nas declarações [da cúpula sobre empoderamento das mulheres] que poderiam justificar a não assinatura da Argentina. São temas confortáveis a países de diferentes posições políticas e ideológicas, incluindo países majoritariamente muçulmanos como Arábia Saudita, Turquia e Indonésia.
Ronaldo Carmona, professor de geopolítica da ESG (Escola Superior de Guerra) e sênior fellow do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais)

[Foram tratadas] questões de interesse de mais de 30 países que estão aqui representados, com exceção da Argentina, que de forma deselegante disse que não concorda com nada do que é civilizado e do que civilizatório. Infelizmente.
Rogério Carvalho, senador pelo PT-SE, sobre postura da Argentina no evento do G20 com chefes de Parlamento

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Trecho de documento final da reunião de parlamentares do G20 em que a Argentina se desvincula do teor do texto
Trecho de documento final da reunião de parlamentares do G20 em que a Argentina se desvincula do teor do texto Imagem: Reprodução/Arte UOL

Histórico de controvérsias

Em julho, Argentina também não assinou a declaração final do Mercosul. Gênero e ambiente foram temas de embate. Milei nem sequer foi à cúpula do Mercosul. Em vez disso, participou de um evento conservador em Balneário Camboriú (SC).

Milei já fez ataques à ONU. Durante a Assembleia Geral da ONU, em setembro, Milei disse que a instituição quer impor um modelo de governo socialista ao mundo. Chamou a organização de "um Leviatã de múltiplos tentáculos que busca decidir o que cada Estado-Nação deve fazer e como os cidadãos do mundo devem viver". A posição contra os órgãos multilaterais é semelhante aos relatos de diplomatas durante a cúpula do Mercosul.

Na campanha, Milei dizia que o aquecimento global era uma farsa. Segundo ele, as mudanças climáticas não são culpa do ser humano. Ele ainda havia prometido que, se eleito, não respeitaria o Acordo de Paris, meta da ONU para reduzir as emissões de gases com efeito estufa até 2030.

Milei tem exercido mais controle sobre a diplomacia argentina. Matheus de Oliveira Pereira, doutor em relações internacionais e professor da Faap, afirma que o governo Milei vem intensificando o controle sobre a chancelaria argentina, "pressionando-a a adotar posições mais alinhadas à sua agenda, mesmo que isso signifique romper com padrões de longa data na política externa do país". A questão de gênero, afirma, não é um tema historicamente inserido na agenda externa da Argentina, "mas ganhou fôlego nos últimos anos a partir da posição - essa sim histórica - de defesa dos direitos humanos e desigualdade".

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Argentino demitiu ministra por voto a favor de Cuba. No fim de outubro, a chanceler Diana Mondino foi demitida depois de a Argentina votar na ONU contra o embargo a Cuba, imposto pelos Estados Unidos há algumas décadas. Ao longo dos anos, a Argentina tem adotado postura contra o embargo, enquanto Estados Unidos e Israel se mantêm a favor. Ronaldo Carmona destaca que o controle de Milei sob a diplomacia ficou mais intenso após o episódio envolvendo Mondino. A oposição ao bloqueio era "uma posição tradicional da Argentina, que teve quase unanimidade na Assembleia Geral da ONU, exceto os Estados Unidos, que pratica o bloqueio, e Israel".

Milei também exigiu alinhamento de diplomatas. Há cerca de um mês, Milei enviou uma carta aos diplomatas dizendo que aqueles que não concordarem com suas ideias devem se afastar do serviço.

Diplomacia de Milei lembra a adotada por Bolsonaro. No governo do ex-presidente, Brasil não aderiu a uma declaração da ONU assinada por mais de 60 países para assumir compromissos em defesa da saúde da mulher. Também abandonou o pacto mundial de migrações da ONU.

Relação turbulenta com Lula

Milei xingou Lula. Durante a campanha eleitoral, no ano passado, Javier Milei dirigiu inúmeros insultos a Lula. Já eleito, o argentino enviou uma carta com convite a Lula para que o brasileiro comparecesse à sua posse, em dezembro. Como Milei havia convidado o ex-presidente Bolsonaro e também devido aos xingamentos a Lula, o petista recusou e enviou o chanceler Mauro Vieira em seu lugar.

Lula queria pedido de desculpas. Em entrevista ao UOL, Lula disse: "Eu não conversei com o presidente da Argentina porque acho que ele tem que pedir desculpas ao Brasil e a mim, ele falou muita bobagem, só quero que ele peça desculpas".

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Presidência argentina rebateu Lula. Após a declaração do petista, um porta-voz da Casa Rosada disse que o argentino "não fez nada do que tenha que se arrepender, pelo menos por enquanto".

Primeiro encontro bilateral pode acontecer no G20. O Itamaraty não confirmou se Milei pediu reunião bilateral com Lula. Até hoje os presidentes se encontraram apenas em junho, na cúpula do G7, na Itália. Eles se cumprimentaram, mas não se reuniram.

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