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Ideia de Bolsonaro de explorar terras indígenas preocupa estudiosos

Na terra índigena Alto Turiaçu, no Maranhão, indígenas da etnia Kaapor procuram vestígios de madeireiros na mata fechada; as árvores derrubadas pelos invasores demoram 500 anos para crescer - Isadora Brant/ Folhapress
Na terra índigena Alto Turiaçu, no Maranhão, indígenas da etnia Kaapor procuram vestígios de madeireiros na mata fechada; as árvores derrubadas pelos invasores demoram 500 anos para crescer Imagem: Isadora Brant/ Folhapress

Alex Tajra

Do UOL*, em São Paulo

06/01/2019 04h00

A ideia do governo Bolsonaro de permitir a exploração de terras indígenas repercutiu mal entre estudiosos e pesquisadores. A equipe do presidente, juntamente com a Funai (Fundação Nacional do Índio), prepara uma regulamentação para liberar, via decreto, atividades do agronegócio dentro de terras demarcadas para os povos originários do país. Segundo a equipe, o objetivo é legalizar parcerias entre indígenas e produtores rurais, tanto para agricultura quanto para criação de gado. 

Estudiosos e pesquisadores ouvidos pelo UOL, todavia, apontam para uma série de problemas ambientais que a medida pode causar. Aumento do desmatamento e, consequentemente, da emissão de gases estufa, que impulsionam as mudanças climáticas, é um deles. Além disso, indicam uma contradição: há um excesso de terras improdutivas no país, o que levanta questionamentos sobre o porquê da exploração de terras indígenas.

Para ilustrar a baixa produtividade brasileira, o Censo Agropecuário de 2017 mostrou que, em média, 1,15 cabeça de gado ocupa uma área de um hectare (10.000 metros quadrados). Em termos históricos houve um aumento irrisório nessa ocupação, já que em 2006, último ano que o IBGE havia realizado o mesmo estudo, esse número era de 1,1 cabeça de gado por hectare.

 "Na verdade, essa ideia do governo não tem nada a ver com produção, tem a ver com a expansão no domínio das áreas pecuárias e com uma certa disputa ideológica sobre o futuro dos povos indígenas", diz ao UOL o cientista e pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Carlos Nobre. "O risco de se acelerar o desmatamento é real, e isso vai acarretar em consequências globais e regionais".

Essa proposta é ideológica, não tem nenhum vetor econômico
Carlos Nobre, pesquisador do Inpe

A preocupação é compartilhada por Nilo D'Ávila, diretor de campanhas do Greenpeace Brasil. "Para utilizar um jargão econômico, o viés é de alta. Caso seja implementado esse projeto, a tendência é aumentar o desmatamento", diz ele, para quem a proposta de Bolsonaro é um aceno à bancada ruralista a fim de ganhar votos e influência no Congresso.

"A bancada ruralista sempre foi grande, mas nunca conseguiu emplacar essas pautas. Há um poder superestimado em cima dos ruralistas. Na verdade, Bolsonaro já entregou os anéis antes da festa, já entregou como vai vestido, e a fome das bancadas é infinita", diz D'Ávila. 

Outra questão exposta à reportagem é o conflito cultural que a medida proposta por Bolsonaro pode trazer. Segundo Nobre, por questões de tradição e ancestralidade, os povos indígenas tendem a preservar a terra. Essa preservação é explícita nos mapas desenvolvidos pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, que mostra áreas demarcadas (verde escuro) muitas vezes cercadas pelo desmatamento (vermelho). 

Mapa elaborado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) mostra terras indígenas cercadas por pontos de desmatamento ilegal - Reprodução/ Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) - Reprodução/ Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)
Mapa elaborado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) mostra terras indígenas cercadas por pontos de desmatamento ilegal
Imagem: Reprodução/ Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)

"O arrendamento da terra é como tirar todo o conhecimento tradicional que estes povos têm, toda a tradição que têm no resguardo da floresta", explica Nobre. Segundo a Funai, até abril de 2017 havia 600 terras indígenas demarcadas, que ocupam aproximadamente 14% do território nacional ou 117.956.054 hectares.

Sai a floresta, entra o gado

Em 1972, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, foi fundada a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). À época, os pesquisadores ouviram dos militares uma frase emblemática, que acabou se transformando em jargão para as políticas ambientais que sucederam a ditadura: "A ocupação da Amazônia seguirá a pata do boi".

A frase correu as décadas e, em intensidades diferentes, fez parte do modus operandi de todos os governos subsequentes. "Desde a ditadura, vemos um processo de colonização da Amazônia. Nunca olharam para o valor da biodiversidade, a tendência foi sempre destruir a floresta e substituir por pastagem, esse modelo ainda é predominante", diz Carlos Nobre, do Inpe.

De acordo com dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (PRODES), do Inpe, entre agosto de 2017 e julho de 2018 houve um aumento de 13,7% no desmatamento da Amazônia. Os maiores índices estão nos estados do chamado Arco do Desmatamento - região onde a agricultura e pecuária avançam em direção à floresta. São 500 mil km² de terras que vão do leste e sul do Pará em direção oeste, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre.

Em estudo recente, o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) afirmou que a pecuária é responsável por 65% da área desmatada na Amazônia. O rebanho bovino na região saltou de 37 milhões de cabeças em 1995, o que era equivalente a 23% do total nacional, para 85 milhões em 2016 - número que corresponde a cerca de 40% do total. 

Para Nobre, a área será uma das mais sensíveis ao desmatamento caso a proposta de Bolsonaro seja implementada. "Há uma demanda muito grande do agronegócio por terras que tenham estruturas próximas, como estradas, cidades, etc. Existem muitas terras indígenas isoladas, mas também muitas que estão dentro ou perto de estradas."

O que diz a Constituição

O artigo 231 da Constituição de 1988 versa diretamente sobre os direitos dos indígenas perante suas terras. O segundo parágrafo afirma que as "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes". O quarto é ainda mais claro: "As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis."

Entretanto, segundo a presidente da Comissão Nacional de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marina Gadelha, há uma lacuna jurídica que poderia permitir ao governo fazer um decreto liberando a exploração agrícola das terras indígenas. "A Constituição silencia sobre a questão agropecuária em específico. Não é como na mineração, que há uma norma direta e clara sobre isso".

Em relação à atividade mineral em terras indígenas, também pretendida por Bolsonaro, a Constituição é mais clara e condiciona a prática à aprovação do Congresso. E ainda seria necessária autorização dos povos que vivem na área demarcada, segundo o parágrafo terceiro do artigo 231.

Mesmo com a lacuna, Gadelha acredita que, caso o governo insista na ideia do decreto, a lei será alvo de contestações no STF (Supremo Tribunal Federal), inclusive pela PGR (Procuradoria-Geral da República). "O termo 'exclusivo' na lei é muito forte, e cabe ao Ministério Público a tutela e proteção dos povos indígenas. Com certeza essa medida vai ser alvo da Justiça", afirma a advogada. 

A ideia de Bolsonaro não é uma novidade. Tramita na Câmara dos Deputados há mais de 22 anos um projeto de lei de Romero Jucá (MDB-RR), então no PFL, que versa sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas. Nesse tempo, foram propostas mais de 130 emendas, repercutindo em infindáveis discussões na Câmara e nenhum consenso sobre o assunto. 

*Com informações de agências