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Corrupção, grilagem e violência: como o crime organizado desmata a Amazônia

Registro da Força-Tarefa Amazônia com derrubada de árvores no dia 8 de agosto em Ajuricaba (AM) - Divulgação
Registro da Força-Tarefa Amazônia com derrubada de árvores no dia 8 de agosto em Ajuricaba (AM) Imagem: Divulgação

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

27/08/2019 04h00

O crime organizado que atua desmatando a Amazônia age de maneira violenta, corrupta e na maioria das vezes com apoio de policiais, políticos ou agentes do estado cooptados por meio de propina.

Com muito dinheiro e longe dos centros urbanos, os criminosos vão além da destruição ambiental: passam por grilagem de terras, lavagem de dinheiro, coerção a moradores tradicionais e até mesmo trabalho escravo.

Os relatos constam de um ano de investigações da Força-Tarefa Amazônia, criada em agosto de 2018 e que conta hoje com 15 procuradores da República dos estados de Acre, Amapá, Amazonas, Pará e Rondônia.

O grupo atua para conter os crimes de desmatamento, violência agrária, mineração ilícita e tráfico de animais silvestres. Nesses 12 primeiros meses, foram seis operações que resultaram em ações penais ajuizadas. Nesse período foram identificados 3.180 hectares desmatados, ou o equivalente a 4.453 campos de futebol.

As apurações revelaram como o desmatamento da Amazônia ocorre por grupos organizados, com altos investimentos e uma série de apoios locais. "O desmatamento é apenas um dos crimes cometidos por esses grupos", conta o procurador Joel Bogo, integrante da Força-Tarefa Amazônia, do MPF (Ministério Público Federal).

Os desmatamentos, em geral, ocorrem em áreas públicas, longe de locais urbanos e de difícil acesso. "Nossa linha de investigação é de crime organizado ambiental. São pessoas que têm muito dinheiro e muitas fazendas. Envolve corrupção de agentes públicos --que são minoria, a maioria é de pessoas honestas, comprometidas--, milícias para fazer a grilagem de terra e lavagem de dinheiro, já que o produto do crime é ocultado por meio de 'laranjas'", explica ele.

Perfis de desmatadores

Na Amazônia, diz Bogo, existem três perfis de desmatadores. Há quem desmate para subsistência, mas que não tem números significativos de área destruída. "São pequenos produtores que desmatam no máximo três hectares para fazer a roça", diz.

Existe o desmatador intermediário, que tem por trás produtores com propriedades um pouco maiores e às vezes contratam até dois peões para ajudar na derrubada. E existe o grande desmatador. "Esses são o grande problema, causado pela criação de gado, os pecuaristas", afirma.

Madeira apreendida pela Força-Tarefa Amazônia em operação feita em Ajuricaba (AM) - Divulgação - Divulgação
Madeira apreendida pela Força-Tarefa Amazônia em operação feita em Ajuricaba (AM)
Imagem: Divulgação

As investigações mostram que, na Amazônia, áreas extensas de desmatamento são encontradas com frequência --na visão das autoridades elas não poderiam ter ser feitas por pequenos ou médios produtores.

"Existe um custo alto para desmatar, não é algo simples. Precisa-se de equipes para operar as motosserras, insumos, sementes... O custo disso pode chegar a R$ 2.000 por hectare. Existem áreas de 200, 300 e até 1.000 hectares desmatadas, como se viu recentemente no sul do Amazonas. Isso pode chegar ao custo mais de R$ 1 milhão, não tem como um pequeno ocupante fazer", afirma.

Segundo a força-tarefa, não se trata de um grupo apenas. Vários se estruturam e se dividem pela Amazônia. "Em geral, são grupos com lideranças locais", diz, citando que há também atuação de pessoas de fora.

"Na operação Ojuara, havia um empresário de Minas. Tem gente de outro eixo que investe nisso, como madeireiras. Tivemos também casos em Rondônia, por exemplo, na operação Máfia da Tora, que pessoal era de Santa Catarina, tinham apartamento em Balneário Camboriú", conta.

Com alto poder econômico, desmatadores acabam tendo grande influência local. "São pessoas que, pelo poder econômico, influenciam políticos e parlamentares e acabam conseguindo emplacar nomes de pessoas próximas a eles para chefia no Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] para garantir a impunidade dos crimes", diz.

Em maio, durante a operação Ojuara, o ex-superintendente do Ibama no Acre Carlos Francisco Augusto Gadelha foi preso sob a suspeita de facilitar crimes ambientais. A investigação ainda apontou que quatro servidores viajaram em operação oficial, em setembro de 2017, até a área que estava desmatada para alertar os criminosos ambientais sobre uma operação nacional do Ibama programada para ocorrer na região.

O procurador afirma que as cifras gastas para desmatar são altas. "Há um investimento, R$ 1 milhão, R$ 2 milhões para conseguir uma regularização, e usa uma estrutura como o Cadastro Ambiental Rural para regularização fundiária."

Fazendeiros colocam as propriedades em nomes de 'laranjas', fazem processo de regularização fraudulenta, com alguma conivência de órgãos públicos. Ou seja, é uma estrutura muito sofisticada, desde a contratação de um profissional de georreferenciamento, até compra de 10, 20, 30 motosserras de uma vez. Só uma ação organizada poderia levar a cabo a prática desses crimes
Joel Bogo, procurador

Modo de atuação

Um dos pontos percebidos pelos procuradores é que os grupos, apesar de agirem de forma isolada, têm um modus operandi semelhante. Bogo afirma que, no caso da investigação da operação Ojuara, de Boca do Acre, havia uma comunicação entre os grupos. "Eles agiam separadamente, mas tinham alguns ramos de contato. Mas o modus operandi é o mesmo. Esses grandes chefes não vão para a mata, ficam nas capitais, e têm pessoas que operam para eles", diz.

Área queimada e desmatada no município de Boca do Acre (AM), mapeada pela Força-Tarefa Amazônia - Divulgação - Divulgação
Área queimada e desmatada no município de Boca do Acre (AM), mapeada pela Força-Tarefa Amazônia
Imagem: Divulgação

"É algo estruturado. Eles têm gerente, uma estrutura hierárquica. Os peões são contratados para irem lá. Existe também a questão do trabalho escravo, porque eles não contratam formalmente, colocam pessoas em situação bem precárias, sem nenhum tipo estrutura, e pagam por diária", afirma.

Para conseguir terras, os grupos também usam violência contra moradores mais pobres. "Em Boca do Acre, eles constituíram uma milícia e usavam violência. Muitas dessas regiões, como são remanescentes de antigos seringais, pessoas acabaram ocupando essas áreas. Mas elas começaram a ser comercializadas e vendidas ou foram devolutas da União e acabaram griladas. E essas comunidades começaram a ser ameaçadas para se retirar. Quem resistia acabava sendo vítima de coerção. E era um pessoal da Polícia Militar que fazia esse serviço, recebia vantagens econômicas desses grupos criminosos e faziam ameaça, expulsão."

Um outro exemplo da atuação violenta veio dos grileiros que se apoderaram da reserva extrativista Arapixi, ao longo do rio Purus, no Amazonas. "Havia moradores que foram impedidos de entrar. Lá há castanhais, eles faziam essa coleta da castanha, mas foram impedidos de atuar por grileiros", conta.

Ele ressalta que existe uma dificuldade de prender pessoas em flagrante. Ao chegar a áreas desmatadas, diz o procurador, normalmente só estão operando os peões, o que resulta muitas vezes apenas na apreensão de equipamentos.

"Em geral o dono não está na área e é difícil levar a cabo [a punição]. Para chegar a essas áreas só por meio de helicóptero ou por terra em estradas ilegais. Pessoas da região conhecem bem o terreno, o agente de fiscalização, não. E existe uma rede de comunicação. Numa certa ação, quando estávamos saindo do Rio Branco para o sul do Amazonas, todo mundo já está avisado. É difícil dar um flagrante. Só se descobre por inteligência, pela rede de informantes", explica.

Piora recente

Bogo afirma que desmatar a Amazônia é uma prática antiga e combatida pelas autoridades há anos, mas admite que teve um rápido crescimento desde o segundo semestre do ano passado. "Isso ocorreu por indicação de que haveria redução de fiscalização e por algumas bandeiras que foram levantadas por autoridades locais de que não iam criar embaraços ao que chamam de 'desenvolvimento na floresta'", afirma.

"O que está havendo é que a fiscalização está arrefecendo em razão dessas sinalizações também", afirma.

As investigações apontaram que o clima entre os desmatadores era de tranquilidade com a nova "atitude" que seria adotada. "Pelos depoimentos, notamos que, por essa conjuntura política, não seria feito nada contra essas ações de desmatamento. Falam que até a destruição do maquinário, que é empregada em caso de apreensão, não seria mais feita", conta.

Os ataques se tornaram mais frequentes no final do ano passado. Em outubro de 2018, equipes ambientais foram atacadas durante operações de combate ao desmatamento ilegal.

Equipe do Ibama foi atacada em Buritis (RO) no dia 20. Com um galão de gasolina, um homem ateou fogo em três das dez viaturas do órgão.

Já uma equipe do ICMBio foi atacada um dia antes no município de Trairão (PA). Criminosos queimaram a única ponte de acesso à Floresta Nacional (Flona) Itaituba 2, onde fiscais verificavam desmatamento,

Áudios mostraram que a ação foi orquestrada por moradores de Bela Vista do Caracol --cuja economia depende de madeira ilegal e extração de palmito.

Outro problema estaria no receio dos servidores públicos em seguir com autuações ambientais. "Os fiscais do Ibama estão receosos de sofrerem sanção interna, como já houve do ICMBio, no caso da reserva Chico Mendes. Logo depois da visita do ministro Ricardo Salles, o chefe da reserva foi exonerado da função por uma demanda dos infratores, que o ministro incrivelmente acolheu", diz.

Em fevereiro, o ministro Ricardo Salles exonerou 21 dos 27 superintendentes do Ibama. Depois, nomeou policiais militares de São Paulo para os principais postos de comando do ICMBio.

No último dia 14, o UOL revelou que servidores do ICMBio se sentem ameaçados por terem participado de uma assembleia da categoria a contragosto da cúpula do órgão.

O UOL conseguiu conversar com um servidor do Ibama, que pediu para não ser identificado. Ele confirmou que há receio de atuação dos fiscais, não só na Amazônia. "Claro que há risco para quem sair autuando, a ordem e falas são todas contrárias. O presidente demitiu o fiscal que multou ele, assim como muitos estão sendo também transferidos, mudados de setor. Multas estão sendo revistas. Ninguém quer se arriscar demais", revelou.

Sem chefe, a força-tarefa do MPF já percebeu um aumento exponencial nos números do desmatamento. "Depois da exoneração, o desmatamento explodiu lá, foram mais de 16 km² --o que é bem significativo para uma área protegida", conta.

Em 2019, o número de multas ambientais despencou. Segundo o Ibama, houve queda de 29,4% nas autuações até o dia 23, quando comparado com o mesmo período de 2018.

ONGs aliadas

Em três anos de atuação na Amazônia, Bogo afirma que nunca precisou investigar nenhuma ONG (Organização Não Governamental) por desmatamento ou queimadas, como o presidente Jair Bolsonaro levantou, sem provas, a suspeita.

"Pelo contrário, quem desmata e faz as queimadas invariavelmente são pecuaristas. As ONGs fazem trabalho bem importante em relação a comunidades, de alternativa de renda para os ribeirinhos, da cadeia de logística para os produtos florestais. Para quem trabalha na Amazônia, se você conversar com policiais federais, integrantes da Justiça Federal, vai ver que é uma suspeita totalmente fora da realidade", relata o procurador, que atuou em Rondônia entre 2016 e o início de 2018, quando foi transferido para o Acre.

Para Bogo, o grande problema para alavancar o combate ao desmatamento é a falta de pessoal. "Ibama, PF, aqui mesmo MPF não têm pessoal suficiente. Ninguém tem dedicação exclusiva. Os procuradores ainda respondem pelo gabinete. Precisaria ter procuradores exclusivos pela magnitude do caso. O déficit é enorme", finaliza.