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OPINIÃO

Como seria 2020 se o fogo tivesse destruído toda a Amazônia ano passado?

Pedro Prado/UOL
Imagem: Pedro Prado/UOL

Miltom Hatoum

Especial para o UOL*

05/01/2020 04h01

Resumo da notícia

  • UOL convidou vozes novas e consagradas para um exercício de reflexão
  • Sob o mote "Como seria 2020, se em 2019...", os textos revisitam o ano passado e analisam o que chega
  • Hoje, o escritor amazonense Milton Hatoum traz uma distopia sobre uma possível destruição da Amazônia
  • Nos dias anteriores, houve textos sobre a verborragia de Bolsonaro, paz em Israel, educação e armas

A última ilha

"Esta é a grande árvore, bem no centro da única ilha que ainda não submergiu. O tronco milenar do macuco, o mais alto do arquipélago submerso, é a torre das torres. A copa frondosa quase toca as nuvens.

Daqui de cima não vejo mais o solo duro e infértil do continente, não vejo cidades nem pessoas, não escuto voz humana.

Acordei num futuro que veio a galope. Montanhas sumiram, e o horizonte é uma massa informe: às vezes parece inundado pela lama, mas quando o sol explode no espaço, parece um deserto da cor de ferrugem. Lembro que antes do sonho e do futuro escutei gritos que vinham de barcos cegos, à deriva na noite de chuva forte. Algum tempo depois, vi labaredas por toda parte...

Eu já dormia, sonhando?

Chove muito, todos os dias com suas noites, e não é inverno no Amazonas. Na última estação chuvosa, uma poeira amarela e úmida flutuava no ar da manhã; de noitinha essa poeira se transformava em agulhas, que caíam com força na água.

Como vim parar aqui, na copa desse macuco-gigante, nessa ilha quase submersa, e tão distante da minha tribo? Onde estão meus parentes e amigos das corredeiras do Alto rio Negro? Quando tudo isso aconteceu?

No sonho eu era um homem-peixe e conversava com montanhas, árvores e animais sagrados. Era uma criança, e os animais e as montanhas conversavam comigo e me diziam coisas que eu tinha escutado dos mais velhos, lá no rio Uapés. Em algum momento do sonho, eu era todos eles, ou éramos um só: humanidade. E o mundo era mais feliz, antes do fim.

Escuto o assobio do gavião sobrevivente, meu amigo, único, empoleirado perto de mim. Ele emite um som agudo, áspero e prolongado: o assobio da fome. Os peixes morreram sufocados na água escura e envenenada; os mergulhões, corta-águas e outras aves comeram peixes envenenados e morreram. Muitos flutuam no rio que não é mais rio, agora uma superfície coberta de carcaças, que parecem fantasmas num mar tenebroso.

O gavião parou de assobiar e prendeu com as garras um passarinho verde que agonizava no galho. Era um dos capitães-da-mata, cantores da floresta. Já não cantava mais, e eu o julgava morto. Escutei o último suspiro do pássaro. As folhas do macuco me alimentam, bebo água de cipó-da-mata, a água do céu é ácida.

O gavião murmurou. Não entendi nada, e pedi que falasse mais alto. A voz rouca disse que dali a pouco nós seríamos os últimos náufragos da viagem.

'Viagem?'

'A viagem para o futuro', disse a voz rouca.

'Há quanto tempo estamos nesta ilha?'

'Não é uma ilha', respondeu o gavião, com um olhar triste.

'É o topo de uma montanha submersa. O céu desabou e o cosmo se desfez. Você pensa que tudo isso foi um sonho do futuro. Mas o futuro é essa paisagem devastada, sem florestas e rios e montanhas. A Natureza que restou...'"

Milton Hatoum - Companhia das Letras / Divulgação - Companhia das Letras / Divulgação
*Milton Hatoum, 67, amazonense, é autor dos romances “Dois irmãos” e “Cinzas do Norte”. “A noite da espera” (2017) e “Pontos de fuga” (2019) fazem parte da trilogia “O lugar mais sombrio”, publicado pela Companhia das Letras
Imagem: Companhia das Letras / Divulgação