Brasileiro do IPCC: O assustador da mudança climática é o que não se sabe
Humberto Barbosa, professor do Instituto de Ciências Atmosféricas da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), foi um dos pesquisadores brasileiros que participou da produção do relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), da ONU (Organização das Nações Unidas), divulgado no último dia 9. "Fui um revisor de um grupo de trabalho do painel", conta.
Coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites da Ufal, Barbosa é uma das autoridades quando se fala em degradação ambiental e do solo no Brasil.
Em entrevista ao UOL, ele afirma que a crise hídrica que o país enfrenta neste ano —e que ameaça causar um novo "apagão"— já é um dos frutos das mudanças climáticas, especialmente um "efeito colateral" do desmatamento na Amazônia.
"O regime de chuvas da região Sudeste do país depende da evapotranspiração da floresta amazônica", afirma.
Em 2019, Barbosa já havia liderado o capítulo 4 de um outro relatório do IPCC, que abordou a questão da degradação da terra —ele assinou o sumário executivo do documento. Naquele momento, já alertava que a região Sudeste seria a mais afetada pelo desmate da floresta amazônica.
Apesar das revelações já feitas pelos cientistas no novo documento do IPCC, ele diz que ainda há muito mais a se descobrir do que o que já sabemos sobre mudanças climáticas.
Parece um clichê, mas a parte mais assustadora da mudança climática não é o que sabemos, mas o que não sabemos.
Leia, a seguir, a entrevista:
UOL - Quais são os pontos que o senhor destaca do novo relatório do IPCC?
Humberto Barbosa - O último relatório abrangente do IPCC havia sido publicado em 2013, e nesses oito anos ocorreram várias mudanças importantes. Destaco as melhorias na capacidade computacional e na modelagem climática; e os avanços na fronteira do conhecimento sobre o sistema climático da Terra, as mudanças climáticas regionais e a vulnerabilidade social.
Nesse novo documento, cientistas afirmam que o aumento da poluição —provocado pela industrialização, urbanização, aumento populacional e demais formas de mudanças no uso e cobertura do solo— tem tornado o planeta mais aquecido. Dentre as causas humanas que aceleram o processo de mudança climática estão: queima de combustíveis fósseis para geração de energia, atividades industriais e transportes; mudança no uso do solo; agropecuária; descarte de resíduos sólidos [lixo] e desmatamento.
Nesse contexto, podemos encaixar que as mudanças climáticas são responsáveis pela seca e pela crise hídrica que o Sudeste enfrenta?
O clima da Terra é afetado por muitos sistemas em interação, incluindo produção de alimentos, energia e água. As decisões em um setor têm efeitos importantes em outros setores. Eles também afetam os sistemas físicos da atmosfera, terra, gelo e oceanos. Por exemplo, considere como os humanos produzem alimentos. Os agricultores são limitados pelo clima em que vivem, o que proporciona certas faixas de temperatura, precipitação e insolação.
A agricultura industrializada moderna permite que os agricultores melhorem suas condições locais usando fertilizantes para aumentar os nutrientes do solo ou bombeando água para irrigar as plantações. Essas estratégias apresentam compensações: aumentam a produção de alimentos, mas também podem aumentar o uso de energia ou a conversão de terras não desenvolvidas para mais agricultura —o que contribui potencialmente para a mudança climática. As crescentes demandas dos sistemas de alimentos, energia e água da Terra, em última análise, geram riscos mais elevados regionalmente para todos.
Mas isso tem relação com o Sudeste agora? Seria algo já esperado, como uma tragédia anunciada?
O pico do consumo de água em São Paulo coincide com o da agricultura, que exigirá cada vez mais irrigação. Isso tende a agravar os conflitos de uso da água. E, para completar, as mudanças climáticas --especialmente onde secas e incêndios florestais estão se tornando mais frequentes-- podem causar degradação da terra mesmo em lugares ricos como o estado de São Paulo.
A Amazônia influencia então todo o sistema?
Sim, especialmente a região Sudeste.
Por que enfrentamos um ano tão ruim? Será rotina?
O ano atual ainda pode ficar úmido e melhorar as condições, embora o retorno do fenômeno La Niña torne isso menos provável. Muitos pesquisadores do IPCC preveem que o desmatamento está levando a Amazônia a um ponto de inflexão, além do qual gradualmente se transformará em uma savana semiárida. Se o desmatamento da floresta tropical continuar além de um limite de 20% a 25% do desmatamento total, múltiplos ciclos irão desencadear a desertificação da bacia amazônica.
Viveremos em um país, e um planeta, com um clima diferente então?
Já vivemos. Antes de 2005 achávamos que entendíamos as secas na Amazônia. O dogma era o seguinte: as secas afetaram apenas algumas áreas, como as partes relativamente secas do leste e do sul da bacia e ocorreram apenas durante os anos de El Niño. Mas, em 2005, testemunhamos algo que ninguém em memória viva jamais tinha visto antes. Aparentemente, devido a uma combinação de aquecimento global e variabilidade climática natural, a superfície do mar no oceano Atlântico tropical se tornou excepcionalmente quente.
Os especialistas da Amazônia coçaram a cabeça e concluíram que havíamos acabado de testemunhar um evento único na vida —algo que nunca mais veríamos. E então, em 2010, aconteceu novamente. A segunda seca foi ainda mais generalizada e devastadora do que a primeira.
Isso parece bem grave...
Sim. Outra fonte potencial de incógnitas desconhecidas são os sinergismos ambientais, que acontecem quando duas ou mais ameaças ambientais se amplificam ou operam em conjunto. Parece um clichê, mas a parte mais assustadora da mudança climática não é o que sabemos, mas o que não sabemos.
E essas dúvidas, obviamente, também estão em relação ao clima brasileiro, certo?
A magnitude de perda de floresta pode levar a Amazônia a esse ponto de inflexão que prejudique ainda mais o processo de reciclagem das chuvas, que repõe o abastecimento de água da Amazônia. Um grande aumento nesse ritmo do desmatamento pode causar mudanças climáticas tanto na América do Sul quanto na América do Norte.
O IPCC prevê que a precipitação diminuirá em muitas áreas das Américas, incluindo a parte sudeste da América do Sul e o vale do rio Mississippi [EUA]. O mundo inteiro sofreria com a redução da produção agrícola nessas duas regiões, importantes fornecedoras globais de commodities agrícolas como milho e soja.
No caso, a região mais arriscada nessas mudanças seria o Sudeste então?
Sim. O regime de chuvas da região Sudeste do país depende da evapotranspiração da floresta amazônica.
Devemos nos preparar para as crises hídricas ficarem mais comuns, assim como chuvas fortes?
O ciclo da água está se intensificando com o aquecimento do clima --isso significa tempestades, secas e inundações mais intensas. O último relatório do IPCC alerta que o ciclo da água vem se intensificando e continuará à medida que o planeta aquece.
O que isso quer dizer na prática?
Por exemplo, o relatório documenta um aumento em ambos os extremos úmidos, incluindo chuvas mais intensas na maioria das regiões; e os extremos secos, incluindo a secagem no Mediterrâneo, sudoeste da Austrália, sudoeste da América do Sul, África do Sul e oeste da América do Norte.
Em termos quantitativos, globalmente, os eventos diários de precipitação extrema provavelmente se intensificarão em cerca de 7% para cada 1ºC de aumento das temperaturas globais. Essa é a ordem de grandeza apontada no relatório. O efeito mais claro do aquecimento global é que uma atmosfera mais quente retém mais água, levando a chuvas mais extremas.
E por que o oposto ocorre também?
Pelo ciclo da água. A intensificação do ciclo da água significa que os extremos úmidos e secos e a variabilidade geral do ciclo da água aumentarão, embora não uniformemente ao redor do globo. Ou seja, os extremos úmidos e secos continuarão a aumentar com o aquecimento futuro.
Mas já estamos sentindo efeitos disso?
Veja, um raro aquecimento das temperaturas na alta atmosfera, na camada denominada estratosfera, poderá modular o clima do Brasil nos próximos meses. Esse aquecimento começou repentinamente na semana passada, num fenômeno chamado de "aquecimento estratosférico repentino". Isso poderá contribuir com grandes volumes de chuva no Sul do Brasil --principalmente no Rio Grande do Sul-- e chuvas abaixo do normal no Brasil central. Os efeitos do aquecimento estratosféricos passarão a ser sentidos na superfície sobre a Antártica a partir da segunda quinzena de outubro.
Saber sobre esses processos, naturais e antrópicos, pode ser crucialmente importante para os tomadores de decisão que tentam gerenciar o risco.
Resumindo então, temos de frear essa mudança climática para não termos tantos prejuízos, correto?
Sim. O cenário ainda é de incerteza. É por isso que, por exemplo, falamos não apenas sobre os resultados mais prováveis, mas também sobre os resultados em que a probabilidade é baixa ou ainda desconhecida, mas os impactos potenciais são grandes.
Eventos anteriores de aquecimento estratosférico e mudanças de vento associadas tiveram seus efeitos mais fortes na Austrália, em 2002 e 2009, onde as temperaturas da primavera aumentaram, as chuvas diminuíram e as ondas de calor e o risco de incêndio aumentaram. Além de aquecer a região da Antártica, o efeito mais notável será uma mudança dos ventos de oeste do oceano Antártico em direção ao Equador.
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